Escalpo

Filipe Narciso
4 min readOct 31, 2023

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Faz anos que parei de pensar em morrer. Não sei dizer com exatidão quando foi, mas faz em torno de dois anos. Foi um processo longo e pouco perceptível, sumindo lentamente dos momentos de muita solidão e angústia e daqueles momentos mais simples e oportunos de ver o trem se aproximando da plataforma ou ter em mãos algum composto químico que não deve ser ingerido. Eu sinto falta, às vezes. Funcionava como uma válvula de escape, uma solução simples, rápida, direta. Era como um estranho afago que vinha de dentro, uma voz que dizia que não precisava mais lidar com tudo aquilo se não quisesse.

É uma coisa mórbida a se admitir. Levou algum tempo, e ainda leva, pra eu reunir a coragem de verbalizar o que isso representa pra mim. Sinto que não tenho as palavras certas. Parece que, se eu não tiver bons motivos, um diagnóstico, uma forte validação, vou ser ingrato pela vida que tenho.

Levou um tempo para eu perceber que aquela pulsão de morte não foi completamente apagada. Em alguns momentos o desejo autodestrutivo domina, as compras impulsas acontecem, o abuso de substâncias, o comportamento evasivo e a vergonha. Uma vergonha que pulsa no fundo da cabeça, faz o mundo girar, transforma o momento presente em um inferno sem fim.

Acho que esse mês foi sobre coisas que você vê e nunca mais consegue parar de enxergar. Descobertas que você faz e nunca mais consegue esquecer.

Na metade do mês, viajei de ônibus para Taubaté mais uma vez. Uma família se sentou a minha frente: uma mãe com suas duas crianças, um mais velho, se aproximando do fundamental dois, e uma pequena em seu colo. Uma mulher mais velha, que infiro ser avó ou outra figura familiar, ficou o tempo todo na plataforma, esperando o ônibus sair, acenando para eles. O menino foi quem acenou por mais tempo. Como não estava sentado ao lado da janela, ele tinha que se esticar na tentativa de ter sua mãozinha vista pela senhora.

Depois do ônibus sair, ouvi a moça fungar algumas vezes, não sei dizer se por rinite, alergia ou por estar chorando. Eu estava fungando também. Sempre fico muito emotivo com essa viagem, mesmo não sendo muito mais que duas horas de duração. Acho que existe algo nessa migração, nesse movimento, que também é pra mim um evento espiritual, algo que me lembra da minha própria transformação, das coisas que deixei pra trás e daquelas que levo comigo. Uma pequena fronteira, uma linha invisível, aqui cruza o Trópico de Capricórnio.

Para esse mês, preciso falar sobre o momento atual do genocídio palestino. Não no sentido de tentar convencer quem leu até aqui de que ele está acontecendo, pois infiro que meus leitores tenham consciência política o suficiente pra isso, mas sim no sentido de enfatizar como comunicadores, pesquisadores e pessoas em geral tem sofrido retaliações por se posicionarem contra o governo de apartheid de Israel e em favor de, às vezes simplesmente, um cessar-fogo. A professora Francirosy esteve entre as recomendações da minha primeira edição, falando sobre a ascensão do Talibã ao poder no Afeganistão e as mulheres que lá estavam, entre o dogma religioso e o colonialismo estadunidense e europeu. Agora, em nova coluna no Jornal da USP, ela comenta sobre as ameaças que sofreu por ter afirmado em suas redes sociais seu apoio à liberdade palestina.

Minha próxima recomendação é um canal no YouTube de um desenvolvedor de jogos que direciona, ou ao menos direcionou nos últimos meses, seu conteúdo a avaliar e desmentir jogos que usam crypto e transações em NFT. Jauwn (que sê lê como algo entre Jão e John) faz um trabalho até mesmo jornalístico, de certa forma, ao investigar os CEOs da empresa por trás dos jogos, os históricos de transações disponíveis nas plataformas e entrar em contato direto com servidores de Discord das supostas comunidades de “jogadores”, que geralmente são apenas investidores desses esquemas de pirâmide. Recomendo em específico seu vídeo sobre Axie Infinity, um dos únicos jogos NFT/Crypto a realmente ter uma base sólida de jogadores por um tempo e a, atualmente, ter abandonado uma série de pessoas com prejuízo de milhares de dólares.

Minha última recomendação do mês foi feita a mim por uma grande amiga e uma das pessoas mais importantes que conheci nessa nova fase da minha vida e se trata de uma análise do livro “Contra a interpretação: e outros ensaios” de Susan Sontag feita pela ensaísta búlgara Maria Popova. A autora usa dos ensaios de Sontag para explicar os desafios da interpretação enquanto ferramenta utilitarista sobre a arte e outras manifestações humanas e busca se posicionar contra uma visão simplista, reducionista nessa tendência de interpretação em todas as coisas. Por mais que não concorde com todos os pontos do texto, além de nunca ter lido nenhum ensaio de Sontag que não seja sobre Camp, o texto é muito bem escrito e oferece também essa passagem que precisava ler a algum tempo, que busquei traduzir abaixo:

Essa noção de vocabulário [Sontag defende um vocabulário que seja descritivo ao invés de prescritivo] relembra mais uma vez a fixação moderna por “conteúdo” — termo pelo qual nenhum autor ou artista que se respeite utilizaria para se referir ao que faz e que, ainda assim, é forçadamente cauterizado ao escrever e à arte pelo vocabulário tirânico da mídia comercial, essa incubadora de consumismo profissionalizado que se preocupa não com a autodeterminação da cultura, mas sim com a sua commodificação rentável.

Esse texto é a 14° edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”. Você pode assiná-la pelo link: https://tinyletter.com/FilipeNarciso

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