Considerações iniciais

Filipe Narciso
4 min readSep 30, 2022

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Faz algum tempo que tenho estruturado um projeto pessoal que nunca encontrava o momento certo para desenvolver. Ficava me perguntando se a proposta realmente fazia algum sentido ou se se tratava apenas de uma repentina necessidade de engrandecimento messiânico que me atingia. Nesse meio tempo, me lembrei de uma situação da minha vida que me impactou desde o segundo em que a vi acontecer ao vivo.

Participei de um processo seletivo em que, dentre tantas pessoas que não conhecia, estava presente um conhecido meu. A sessão de perguntas foi coletiva, com cada um de nós recebendo uma pergunta individual a ser respondida. Sob o silêncio desconfortável presente na sala, esse colega, sentado ao meu lado, foi apresentado à pergunta: “Ouvir ou falar? Por quê?”

Provavelmente antes mesmo dele processar o que responder, eu já tinha pensado em duas coisas:

  1. que ele responderia que prefere ouvir;
  2. que eu gostaria que a pergunta tivesse sido feita para mim, para que eu pudesse dizer que preferia falar.

Meu colega era, e deve ser até os dias de hoje, um aluno e cidadão exemplar. Educado, tímido, esforçado, até mesmo um pouco robótico. Eu já convivia com ele há anos e sabia muito bem que, para ele, era suficiente se contentar em dizer que prefere ouvir. Seria suficiente argumentar que ouvir é uma demonstração de respeito e uma forma valiosa de aprendizado.

Eu, por outro lado, sempre fui mais bagunçado, irreverente, passional. Naquele momento, a inspiração se transformou em adrenalina dentro de mim enquanto eu estava sentado, quieto, tentando conter minha empolgação em perceber que, pra mim, falar era muito, muito mais importante.

Não me lembro mais qual fora a minha pergunta, fiquei com a pergunta do rapaz travada no meu organismo desde então. Nós dois passamos, no final.

Na verdade, também sou bom ouvinte. E com certeza muito mais ouço, leio e admiro do que falo ou escrevo. Mas reconheço que, sem o poder do posicionamento que vem com o falar, nunca me será confortável ser mero ouvinte num mundo pensado contra minha identidade enquanto homem aquileano/gay queer. Mais ainda, numa sociedade ocidental cisheteronormativa racista colonial patriarcalista capacitista, responsável pela opressão de qualquer minoria social.

Estive, portanto, me fazendo certas perguntas esses últimos tempos: por que minha voz importa? Existe alguma forma de me posicionar sem me ver vulnerável? Como eu poderia me tirar da apatia incômoda de ouvinte?

Com essa reflexão em mente, e como consequência de certos acontecimentos desse último mês, decidi-me por finalmente colocar em prática meu projeto, que consiste em uma newsletter mensal com uma crônica/produção textual autoral curta acompanhada de em média três produções textuais ou multimídia, igualmente curtas, que recomendo e que estejam ligadas ao conteúdo escrito por mim. O formato, no entanto, está suscetível a alterações. Também gostaria de mencionar a possibilidade de recomendação de conteúdos em língua inglesa, ao passo de que me comprometo à responsabilidade de recomendar ao menos um texto em português por edição.

Tomo por referência para minha escrita as crônicas dissidentes de Paul B. Preciado, uma de minhas maiores inspirações. Com Preciado percebi que podia me apaixonar pela forma que outra pessoa se expressava, elencava seus pensamentos e suas visões de mundo.

Não tenho, não devo e nem espero algum dia ter a significância e influência que Preciado possui, nem me coloco em posição de me comparar a ele, só o dou o crédito como uma das referências mais importantes a minha própria identidade enquanto pessoa que escreve.

Nessa primeira edição, além de Preciado, também recomendo textos de duas professoras da USP, Gabrielle Weber e Francirosy Campos Barbosa, devido à proximidade que compartilho com elas enquanto parte da comunidade acadêmica da Universidade de São Paulo.

Por fim, minha última recomendação é em inglês e em um formato audiovisual conhecido como video essay feito pela Youtuber Shanspeare. Nele, ela propõe uma reflexão metalinguística sobre o papel desse tipo de produção e seu apelo atual somado a uma discussão pertinente sobre capital cultural e o papel do conhecimento universitário na contemporaneidade.

Na enorme vulnerabilidade de me expor todos os meses sobre assuntos que me são importantes, tenho a esperança de que pelo menos uma pessoa possa ser impactada como fui (e sou) ao me deparar com como certas pessoas pensam. E como expressam esses pensamentos. Seja com o que escrevo, seja com o que recomendo.

Mas, principalmente, escrevo para não me ver calado diante dos eventos. Não me vejo como alguém que cria alguma coisa. Acredito ser mais lógico me ver como alguém que destrói com a finalidade de divulgar o que outras pessoas, dissidentes como eu, constroem.

Recomendações

Quem defende a criança queer? por Paul B. Preciado e traduzido por Fernanda Ferreira Marcondes Nogueira

Nunca foi sobre coragem por Gabrielle Weber

Mulheres afegãs entre colonialismos e Talibãs por Francirosy Campos Barbosa

The Era of The Critic: Why are Video Essays so Popular (and Hated)? por Shanspeare

Esse texto é a primeira edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”, pela qual você pode assinar através do link: https://tinyletter.com/FilipeNarciso

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