We’re all going to the world’s fair (2021): horrores da adolescência na realidade digital

Filipe Narciso
9 min readAug 10, 2023

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Frame do filme We’re all going to the wold’s fair e sua protagonista, Anna Cobb.

Não sabia exatamente o que me esperava quando tomei a decisão de assistir We’re all going to the world’s fair. Se você pesquisar por ele na internet e ver suas categorias, estará que se trata de terror e drama. Como quem admira uma bela capa de livro numa livraria, abri a pesquisa de imagens para ver um pouco mais de seus frames e fiquei mistificado, intrigado. Cheguei ali por conta de uma foto que tirei. Com um cenário e uma paleta de cores parecida com a imagem acima, um amigo que faz cinema me disse que parecia que estava no universo do filme. Foi o suficiente para eu decidir abandonar tudo que tinha ou não para fazer naquele dia.

Estreado no festival de Sundance em janeiro de 2021 e só chegando a algumas salas de cinema estadunidenses e ao streaming perto da metade de 2022, o filme é protagonizado pela personagem Casie, uma adolescente solitária, que decide gravar-se participando do desafio World’s Fair. Em uma subversão de filmes de terror convencionais, com seu sangue, monstros e jumpscares, não há em World’s Fair, de certa forma, uma culminação de um sentimento de perigo. Ainda assim, é um filme carregado de um forte sentimento de desconforto, de aperto.

Com uma fotografia sombria e, ao mesmo tempo, colorida, digital, quase alienígena, tudo que é real parece, simultaneamente, distante e artificialmente saturado ou opaco. Num diálogo, uma provocação talvez, com o espectador, o longa questiona com frequência o sobrenatural. Brincando com a metalinguagem da produção de vídeos caseiros contemporânea, o filme apresenta uma história em que quem o assiste observa as dinâmicas estabelecidas entre a protagonista e o mundo ao seu redor com dúvida, podendo realizar suas próprias inferências. Como se na ausência de um narrador, de uma força que o impele constantemente a ver o que precisa ver e pensar o que precisa pensar, vemos o desdobrar dos eventos primeiro como um observador da vida de Casie, depois, numa mudança de tom, da perspectiva de outro observador de Casie, dessa vez um personagem, sobre o que de fato acontece. E essa dinâmica narrativa é o que torna We’re all going to the world’s fair tão especialmente assustador para mim.

Eu recomendo, caso esteja lendo e tenha interesse em ver o filme, que tente assistir e observar essa dinâmica antes de continuar. A partir daqui, tudo é spoiler.

Questão de Performance

Após gravar o desafio e publicá-lo na internet, percebemos Casie recear em continuar produzindo vídeos. Desmotivada, envergonhada, ela se questiona se alguém realmente assistiria aquilo e se importaria. Até receber uma versão editada de seu desafio, com uma música tensa e seu rosto se transformando em algo monstruoso, com uma mensagem afirmando que ela corre perigo.

Importante contextualizar a solidão da personagem. Durante toda a duração do filme, não há nenhum momento de socialização de Casie com amigos ou família, exceto talvez pela figura de seu pai que, por sua vez, nem aparece no filme. Seu único momento durante toda a extensão do longa é uma fala violenta entre portas fechadas contra a adolescente, a condenando por fazer barulho durante a madrugada. Ele não possui uma forma e, como única família restante da personagem, ele só é um símbolo de maior distanciamento de Casie quanto ao mundo ao seu redor.

É nessa configuração que entra a figura de JLB, o responsável pelo vídeo que Casie recebeu. Uma persona sem rosto, se escondendo em uma chamada de Skype atrás de uma famosa ilustração creepypasta encapuzada e sorridente, a voz (adulta) masculina é gaguejante, vacilando entre palavras para completar as mais simples frases. JLB diz à Casie que ela pode se transformar em algo horrível por ter decidido participar do desafio e a convence a continuar filmando seu cotidiano para ele acompanhar sua transformação.

Nesse momento se subverte a perspectiva da história. De observadores passivos junto à Casie daquilo que outras pessoas que participavam do desafio publicavam, como um pássaro em seu ombro, passamos a observar a maior parte da vida dela pelo que produz para a internet. Surtos, comportamentos bizarros enquanto dorme e outras atividades fora do comum fazem com que JLB demonstre preocupação pela jovem e sua aparente possessão por uma força maligna. A adolescente passa então a provocá-lo, testá-lo, endereçando vários comentários indiretamente para ele em seus vídeos.

É apenas a partir do momento em que ela faz confissões de ideação suicida e de violência contra sua figura paterna que JLB decide intervir. “Você sabe.. é só.. um jogo que estamos jogando”. Quebrando a barreira da performance, ele expõe a verdadeira dinâmica do desafio World’s Fair: um rito de iniciação para participar de uma espécie de MMORPG da vida real, construindo seus próprios personagens e histórias sombrias para viver um filme de terror na realidade. Contrariada, defensiva, a garota que se denomina Casie se revolta com a intromissão de JLB e sua pretensa preocupação com seu bem estar, questionando se ele realmente acreditava que ela faria o que disse. Irritada, ela nega que aquele sequer seja seu nome real e desliga a ligação entre eles, chamando-o de pedófilo.

Comunidades contadoras de histórias e criadoras de ambientes de terror são tão comuns quanto populares atualmente, em especial com um apelo a públicos jovem/adolescente. Há anos, alguns dos maiores criadores de conteúdo da plataforma Youtube são lets players de jogos de terror. Franquias como Five Night’s at Freddy’s ou o acervo virtual da fundação SCP ou então a mais recente iniciativa a dominar essas esferas, a mitologia do denominado backrooms, são todos frutos de propostas coletivas de indivíduos dedicados, assim como no filme, a construir um universo compartilhado, uma dimensão de terror. Ao se inserir em primeira pessoa nesse universo, Casie parece simultaneamente performar uma ideia de força maligna interna quanto libertá-la.

Na brincadeira de exposição a que Casie se propõe, sua fala sobre a arma é como um segredo estabelecido entre ela e o espectador do filme. Como figura mais onisciente, um termo empregado de forma bastante livre nesse contexto porque, na verdade, nós ainda estamos dentro de uma caixa de informações apresentadas pela fotografia e nada mais, podemos confirmar que, quando ela diz saber onde seu pai guarda uma arma, não se trata de blefe ou invenção. Essa confirmação coloca em tensão todas as outras afirmações da jovem como mera performance ou uma canalização de verdadeiros desejos destrutivos.

Após quebrar a ficção estabelecida entre eles, passamos a ver a história somente da perspectiva de JLB. Em uma aparente passagem de tempo, o homem afirma que meses após os eventos daquela noite a adolescente entrou em contato com ele novamente. Disse que precisou ser internada numa clínica psiquiátrica e que agora estava bem. Se encontraram para conversar e, de acordo com ela, naquela noite ela foi pra World’s Fair, mas algo a puxou de volta. Ele estava lá, a noite toda, com as mãos estiradas frente a sua tela do computador, orando e pedindo para que ela retornasse.

Existe uma série de razões pela qual essa conclusão nunca me pareceu verdadeiramente sobre e para a história de Casie, mas sim para JLB e a continuidade da comunidade de World’s Fair. Afinal, ele é um moderador a sua medida, um dos símbolos dedicados a alimentá-la, organizá-la, mantê-la viva. Confiar na narrativa dele, um homem que esteve assistindo vídeos de uma adolescente enquanto dormia, sobre esses eventos parece ingenuidade. Até mesmo sua preocupação com o bem estar mental da adolescente pode ser escuso, pois caso ela realmente estivesse a ponto de cometer algum ato de violência, a integridade e a funcionalidade do MMORPG poderiam ser comprometidos.

Tirando nossas duas personagens e suas performances, o filme parece construir um mundo inatingível. Quando colorido, nada parece feliz, mas sim intoxicante. Quando opaco, nada parece calmo ou melancólico de forma comum, mas sim niilista, desolado. A cena em que Casie se encontra na festividade de Ano Novo de sua cidade, é marcante como todos parecem NPCs. Mesmo rodeada de pessoas, é como se fossem um aglomerado de humanoides sem rosto, programados, parte de um cenário de uma ideia de cidade. Simulação e realidade se entrelaçam continuamente em suas diversas esferas de representação e assimilação. Nada é conclusivo ou guiado e, ainda assim, é uma assombrosa demonstração das dinâmicas do mundo digital.

O que é a World’s Fair?

É tudo de sobrenatural, impossível, que está e existe do outro lado da tela do computador. É a junção de todos esses elementos incompreensíveis encerrados numa série de histórias. Claro, é um universo com suas regras narrativas, mas como se é construída a partir do desconhecido, por natureza, tudo é possível. É como comparar qual é o super-herói mais forte. Pela natureza da ficção, qualquer resposta é possível, e muito provavelmente será o seu favorito.

Me lembro da primeira vez que vi uma gameplay do jogo indie Imscared — A pixelated nightmare, quando tinha em torno de 12 anos de idade. Fiquei apavorado. O grande diferencial do jogo é que ele agia como um vírus de computador, constantemente quebrando a quarta parede ao criar novos arquivos de texto no computador de seu jogador, se comunicando diretamente com ele sem o intermédio do seu executável e da aba do jogo. Para mim, ele estava ali, era real. Mesmo que eu não estivesse jogando em primeira mão, meus pensamentos se direcionavam a ideia de que, se essa criatura podia escapar para o computador de quem eu assistia, não deveria ser difícil chegar até mim também.

Um dos filmes de terror mais famosos do início dos anos 2000 também tem uma premissa parecida. Um dos elementos centrais do terror de O Chamado (2002) é a incorporação da tecnologia para espalhar o terror do impossível. É a criatura que sabe que você assiste sua fita, que sabe o número do telefone mais próximo, que pode cruzar pela tela da televisão para te pegar.

Hoje percebo que os terrores com que convivi crescendo em contato com um computador nunca foram sobrenaturais, na verdade foram excessivamente concretos. Quando tinha em torno de 10 anos, era viciado num jogo de ratinhos chamado Transformice, que tinha num geral um público mais velho, mais adolescente. Nessa época, comentei com minha namorada e seu irmão do jogo que estava pensando em me matar. De forma agressiva, eles sugeriram que eu me matasse mesmo. Nunca mais senti a mesma vontade de jogar e, com o tempo, fui abrindo mão do jogo.

Hoje, esses adolescentes que como eu foram criados consumindo conteúdos de terror para adolescentes e transitando entre comunidades e jogos na internet, se tornam adultos. Os primeiros adultos a terem a maioria do seu consumo de mídia e de socialização intermediado pelo digital, cosmopolitas por natureza, conectados, ciborgues. Nossos corpos são físicos e também extensões de nossas existência digitais.

Se concordo com o que leio de Preciado, até minha sexualidade é algorítmica por natureza. Meus desejos e minhas expressões sexuais são inerentemente moldadas pelo que eu consumo e pelo que sou digitalmente. A maioria dos rapazes que conheci foi por apps de relacionamento. Nos poucos casos em que os conheci pessoalmente, continuamos nosso contato digitalmente.

Meu trabalho é digital. De acordo com o último oftalmologista que fui, preciso me dedicar mais a piscar, porque meus olhos não têm fechado totalmente quando pisco, um fenômeno comum em caso de exposição frequente a telas e que pode degradar a qualidade da visão e dos olhos com o passar do tempo. Pisco. Agora penso em piscar.

Um ano antes de entrar no colegial, estava passando por uma fase difícil e solitária. Na época, fiquei fascinado com uma plataforma de conversa anônima Omegle, em que você poderia simplesmente chegar a qualquer pessoa falando sobre qualquer coisa. Creio não ser necessário explicar que uma das suas funções mais famosas, de longe, era ser utilizada para fins sexuais. Por isso nunca usei a versão de vídeo, apenas a de mensagem de texto. Era tão difícil para mim conhecer pessoas. Fiz uma amiga por lá, nessa época, mais nova do que eu. Vi-a pessoalmente pela primeira vez no ano passado. Saímos para conversar e a levei para conhecer um dos meus restaurantes favoritos. Algumas semanas atrás, assisti uma apresentação sua e vi as lágrimas rolarem pelo seu rosto quando seu priminho parabenizou a ela e a toda a equipe pelo que haviam feito. Eu me pergunto, hoje, o que nós dois estávamos procurando naquela época, indo de chat de mensagem em chat de mensagem, tentando só encontrar alguém com quem conversar.

Ser um adolescente com acesso irrestrito a internet, sem hipérbole alguma, salvou minha vida. Foi o que me manteve vivo por tantos momentos de completo isolamento social e sensação de alienação entre ser quem eu era e existir no mundo que me rodeava. Por isso não consigo me imaginar defendendo que pais controlem o que seus filhos veem na internet. Poder conversar e flertar com outros garotos gays pelo digital foi o que me permitiu ir me abrindo lentamente na relação comigo mesmo para ser a pessoa que sou hoje.

Mas também me expôs a uma gama de situações de vulnerabilidade a violência e me deu minha própria dose de traumas com que lidar. We’re all going to the world’s fair me deixou aterrorizado por conta disso. De maneiras diferentes, eu já estive ali, eu fiz essa performance e eu era só uma criança.

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