Uma sombra atravessa a porta

Filipe Narciso
2 min readSep 9, 2024

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Ilustração Própria. Foto por Mongoldan/Freeimages

Moro sozinho em um apartamento pequeno. Em meu prédio de três andares, fico no bloco mais alto, de frente para outros apartamentos. É uma espécie de cortiço contemporâneo, uma habitação minúscula e prática pensada para locais com superpopulação. Não é ruim. Gosto de morar aqui, me sinto seguro.

Há muito tempo percebi um padrão: quem passa pelo corredor projeta uma sombra em meu quarto. Percebi por causa da vizinha do apartamento ao lado. Educada, quieta, ela parece ser mais nova. Quando ela chega tarde e estou tentando dormir, ouço seus passos, abro os olhos, as luzes lá fora se acendem e eu acompanho a sua sombra passar da janela para a porta e desaparecer. Durante a noite, as luzes tem sensores de movimento e se acendem ao reconhecer alguém. Quando venta, e quase sempre venta, elas acendem sozinhas e ficam alguns segundos acesas durante a madrugada, iluminando meu quarto.

Costumo dormir mal quando é verão. O calor fica impregnado nas paredes e me deixa inquieto, os mosquitos me fazem coçar, a porta de metal dilata e estala. Qualquer incômodo me coloca alerta de novo, incapaz de dormir.

Quando eu acordei ele já estava ali.

São 3:40 da manhã e tem alguém em frente a porta. Não há mais nenhum barulho, só consigo ouvir meu coração bater enquanto eu encaro fixamente a sombra em meu quarto. As luzes lá fora permanecem acesas, como se esperassem algum movimento. Não tranquei a porta, nunca a tranco. Não posso tentar trancar agora, não sei se ele sabe que estou acordado. Se eu me mexer, ele vai saber. Se eu pegar o celular, ele vai ouvir. Ele deve saber exatamente o que estou pensando. Não tenho como saber se ele já não esteve aqui dentro. De vez em quando, as luzes se apagam e acendem de novo, a porta ou o teto emitem algum som abafado, mas ele continua ali. E eu só consigo olhar para aquela sombra. Sinto que, de alguma forma, através da porta, os olhos dele me observam. Sem qualquer ruído, a sombra começa a se espalhar, crescer, cobrir cada vez mais a luz que entra, os feixes de luz que atravessam a janela começam a ser abafados, como se fossem refratados por uma substância viscosa. A porta está quase toda camuflada mais uma vez, invisível, irreconhecível. Sinto muito sono, meus olhos doem, preciso me manter atento, mas não consigo ver mais nada. A última coisa que me lembro antes de dormir é de ouvir o girar da maçaneta.

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