Um ovo quebrado

Filipe Narciso
4 min readJan 31, 2024

--

Eu tive esse sonho estranho alguns dias atrás. Decidia participar de um projeto de extensão de uma professora da faculdade, sem saber do que se tratava. Minha motivação, na verdade, era poder me aproximar dela para poder pedir ajuda com meu TCC, pois admirava seu trabalho e achava que ela poderia me ajudar muito se eu conseguisse convencê-la de que era confiável. Quando cheguei para o primeiro encontro, descobri que precisávamos cuidar de um ovo. Apenas isso, um pequeno ovo branco de galinha.

Ela ensinou a mim e aos outros alunos como limpar, cuidar, manter na temperatura correta e garantir um crescimento saudável para aquele pequeno embrião. Como um sonho, claro, alguns detalhes eram bizarros demais, como o laboratório em que estávamos ser o laboratório do meu colégio do ensino médio, mas num geral tudo fazia sentido. Levei meu ovinho para casa comigo, na esperança de ser um bom criador para ele.

A partir daqui, vem uma série de detalhes de que não me recordo desde o momento em que acordei. Todo o desenvolvimento da história depois daqui é apenas um borrão na minha mente, só me restando saber a conclusão. Antes de falar sobre o final, queria comentar uma pequena história que me lembrei ao decidir escrever sobre esse sonho.

Em uma das minhas sessões com minha antiga psicóloga, comentei com ela que estava me sentindo muito estressado, mas que não podia parar ou descansar, eu precisava continuar tentando, continuar seguindo em frente. Ela então me contou uma história sobre a vida dela. Sempre gostei de profissionais assim. Eu acho que as experiências pessoais vão ser perceptíveis quer você queira ou não, então ter transparência sobre elas me faz me sentir mais respeitado, tratado com honestidade. Ela me contou sobre como, em uma época da sua vida, estava com diversos projetos ao mesmo tempo, se dedicando a diversas coisas simultaneamente, evitando pensar no cansaço e no estresse. Até que, um dia, ela foi pegar um ovo dentro de sua geladeira e ele escapou de sua mão, caindo no chão. Crek.

Ela chorou sem parar. Ver aquela mistura pastosa de clara e gema manchando o chão de sua cozinha fez todo o estresse e cansaço subir a sua cabeça e ela desabou. Foi ali que ela atingiu seu limite, naquele evento tão pequeno, mas que significou tanto.

Voltando para o meu sonho, no que pareceram ser poucos segundos já havia se passado uma semana desde que eu tinha me comprometido a cuidar daquele ovo, mas eu havia me esquecido dele. Abri a geladeira de casa, onde o havia guardado, e o segurei em minhas mãos. Sua casca estava cheia de manchas esverdeadas como vinhas, fungos, como se estivesse esperando uma limpeza há tempos. Coloquei-o embaixo da água corrente da torneira e vi as marcas do meu descuido sumirem pouco a pouco. Mas não foi o suficiente.

A casca estava fina como uma folha de papel e só de segurar ela começava a rachar. Eu só pude observar enquanto as rachaduras iam ficando cada vez maiores e o líquido de dentro começava a escorrer. Eu tinha falhado no meu dever como cuidador. E era uma cena triste de se ver, o passarinho malformado banhado no amarelo vivo da sua própria placenta.

Eu acordei rápido, sentindo um forte desconforto. Fiquei alguns minutos na cama, pensando na textura da casca do ovo, em como parecia real a sensação dela se desmanchar na minha tentativa de toque suave. Levantei e fui tomar café da manhã. Ovos mexidos.

Para esse mês eu recomendo uma plataforma de divulgação e arquivamento de textos escritos por mulheres romani/ciganas. A Romnja Feminist Library reúne textos e obras de mulheres romani em diferentes línguas e tem como visão, valor central, criar espaço para as vozes de mulheres romani e seus escritos feministas, anti-racistas, anti-coloniais e anti-patriarcado, perpetuando a coragem dessas mulheres que desafiam as narrativas vigentes.

Também recomendo a leitura da reportagem de Daniel Haidar para a Repórter Brasil sobre o assédio jurídico promovido pela mineradora canadense Belo Sun no Pará contra a população sem terra a que era destinada reforma agrária, na mesma região do estado afetada pela construção da usina de Belo Monte. Na tentativa de construir a maior mina de ouro a céu aberto do país, a Belo Sun recebeu o terreno irregularmente durante o governo Bolsonaro e pede a prisão da população que ocupa a região, desde pessoas sem terra até representantes de ONGs de causas ambientais.

Por fim, recomendo a leitura da reportagem de Gustavo Basso para a DW sobre os impactos socioambientais das fontes de energias verdes (eólica e solar, especificamente) na região da caatinga brasileira. Em texto bastante detalhado, Basso traça todos os impactos impulsionados não pela fonte de energia renovável, mas sim pela forma que desconsidera as populações locais para otimizar o lucro das empresas responsáveis. Barulhos altos continuamente, desmatamento, aumento de temperatura local, doenças e impactos na saúde da população local, assoreamento de rios, todos sintomas da falta de regulamentação e normatização desses parques de geração de energia que dominam, em especial, a região Nordeste do país.

Esse texto é a 17° edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”. Você pode assiná-la pelo link: https://filipenarciso.substack.com/

--

--

No responses yet