Um breve desconhecido
Antes de começar essa edição, deixo um alerta de gatilho para temas que envolvem distúrbios alimentares. Não tenho tanta clareza quanto a como informar ou comunicar situações que envolvem DA, então prefiro pecar pelo excesso.
Moro perto de onde trabalho, meia-hora de caminhada. No começo, pegava o ônibus para casa e não demorava nem vinte minutos no caminho de volta. Por conta da ida ser um pouco mais complicada, dependendo do bom funcionamento do transporte público, um dia decidi ir andando e percebi que cheguei essencialmente no mesmo horário que chegaria se tivesse esperado pelo ônibus, então passei a fazer o trajeto a pé todos os dias.
Se me perguntar, optei por ir a pé para não ficar sedentário e fazer um pouco de atividade física durante o dia, já que não encontro mais tempo para academia ou exercícios na minha rotina. Mas, na verdade, o principal motivo é que me permite evitar o desconforto de estar ali, no meio de todas aquelas pessoas, sem saber onde apoiar minhas mãos, sem ter que me espremer entre desconhecidos, sem precisar entrar num espaço vazio da minha mente para fugir do momento presente.
Então, mesmo quando muito cansado, com os pés doendo, e até atrasado, ainda prefiro fazer meu trajeto diário um passo de cada vez. Muitas vezes, mesmo sob chuva forte, fui andando para casa. Depois de chegar ensopado, pendurei minhas roupas molhadas para lavá-las no dia seguinte. É um trabalho extra, é desgastante, mas não tão cansativo quanto um transporte lotado.
Não é a primeira vez que faço essa escolha. No ensino médio, depois de mudarem os horários da minha linha de ônibus, o que consequentemente me fazia ter que esperar trinta minutos simplesmente para que passasse, comecei a andar para casa. Passava por avenidas, passarelas, ruas pouco movimentadas, via os carros indo a toda velocidade pela rodovia Presidente Dutra e chegava em casa entre uma hora, uma hora e dez minutos depois.
Hoje, gosto de observar as árvores dos lugares por onde ando. Pela presença significativa de natureza, muitas vezes vejo borboletas, cigarras, lagartas. Uma das únicas coisas que me incomoda é a necessidade de atravessar ruas, porque nas ruas há carros e, dentro dos carros, pessoas. Atravessar qualquer faixa de pedestre é, de certa forma, uma espécie de socialização em que você está na hierarquia menor. Assim, o pedestre é aquele que pede para ser visto pelo motorista e que ele o permita chegar ao outro lado. No meu caso, prefiro não ser visto, então espero a rua estar vazia após os carros passarem, e só tento a sorte em implorar que parem e me vejam quando estritamente necessário.
Gosto de me colocar só como um transeunte, um breve desconhecido. Alguém que todas essas pessoas ao redor não vejam por tempo suficiente para lembrar que rosto tenho ou para reparar nos detalhes e imperfeições que possuo. Alguém que não se demora, vai embora assim como chega e não ocupa espaço algum nas ruas ou na memória.
Mas nem sempre é possível não se demorar. Também esse ano comecei a ter o hábito de almoçar ou jantar sozinho, de vez em quando, no restaurante universitário. E, para toda vez que isso acontece, sigo meu pequeno ritual. Primeiro, tiro minhas luvas, coloco-as abaixo da bandeja e retiro minha máscara. Depois, seguro meus talheres com firmeza, porque se não os segurar firme, podem escorregar ou causar qualquer tipo de acidente. Por fim, passo os ingredientes separados da bandeja para o baixo relevo central para, enfim, poder comer. Mastigo rápido, mas não rápido demais, senão posso me desastrar de alguma forma. Portanto, tomo certo cuidado, tentando me ocupar em sentir a textura da comida em minha boca enquanto ignoro as vozes e os olhos que me rodeiam.
Sinto que todos esses processos deveriam ser involuntários, mas pra mim são uma atividade mental de grande importância. Preciso pensar em cada detalhe do que estou fazendo, para garantir que não erre nenhuma etapa. Vários são os pequenos rituais que preciso realizar todos os dias para manter minha ansiedade sob controle. Se não faço esse ritual para comer, volto aos meus hábitos do ensino médio em que, alguns dias, passava até dez horas sem me alimentar simplesmente porque nenhuma fome que sentisse era maior do que a vergonha que tinha de comer perto das outras pessoas.
Não sou mais criança e nem mais adolescente. E, como um adulto, é estranho pensar que alguns dos meus maiores medos sejam comer sozinho em público ou pegar um ônibus cheio. Mas, ao mesmo tempo, não são medos, por assim dizer. Não funcionam como fobias. Posso fazer essas coisas sempre que quiser, assim como fiz milhares de vezes até aqui. Mas são enormes desconfortos, pequenas ações que requerem de mim uma quantidade de energia imensa, muitas vezes inexplicável. A tensão que sinto no meu corpo e os incessantes pensamentos que atingem minha cabeça não me permitem relaxar. Não relaxo, não me sinto bem, não me sinto sequer neutro.
Desde que comecei com minha medicação, minhas crises e explosões emocionais se tornaram muito menos frequentes e intensas. Mas esse desconforto existencial continua ali, essa sensação de alerta constante que me impede de descansar, seja como for. Olhar os insetos enquanto ando ou prestar atenção na textura da comida que mastigo, algumas vezes, é o suficiente para que me acalme. Muitas vezes, não é.
Para a edição desse mês, indico o ensaio Everyone Is Beautiful And No One Is Horny. Com uma precisão horrorizante, Raquel S. Benedict exemplifica, a partir do cinema, como a ausência de tesão tem sido proporcional à busca por um corpo perfeito, um corpo funcional e sem prazer preparado para competir em sociedade e combater um inimigo invisível. Uma obra-prima em coesão e referenciação (ainda que talvez dê muito protagonismo e crédito ao Robert Pattinson).
Pelo segundo mês consecutivo, recomendo um artigo de Poppy Noor. Dessa vez, o íncrivel e doloroso The men who leave their spouses when they have a life-threatening illness, em que as desigualdades de gênero relacionadas a cuidados e trabalhos familiares são expostas em decorrência da contração de doenças com risco de morte. O que me chamou a atenção é que, em um dos artigos citados no texto, o escopo da pesquisa envolve tanto casais homossexuais como heterossexuais e, em ambas as situações, homens tem uma maior tendência a diminuir a gravidade da doença e, consequentemente, prover menos cuidado à pessoa adoentada.
Em uma nota mais leve, recomendo o canal How To Cook That da cientista de alimentos e chef australiana Ann Reardon. Com um caráter extremamente jornalístico e informativo, junto à uma linguagem descontraída e empírica, Ann Reardon construiu um legado sólido em desmascarar e desmentir tendências enganosas da internet e questionar o funcionamento dos algoritmos para a criação de conteúdo nas redes sociais.
Por fim, recomendo a entrevista da professora e geógrafa Larissa Bombardi para a Rádio Brasil Atual. Em sua entrevista, Bombardi questiona alguns dos pontos levantados pela bióloga Natalia Pasternak sobre a transição agrícola do Sri Lanka e aponta a facilidade de se cair em um discurso cientificista, pelo qual legitima uma ciência que serve somente aos interesses da esfera privada.
Recomendações
Everyone Is Beautiful and No One Is Horny — Blood Knife por Raquel S. Benedict
The men who leave their spouses when they have a life-threatening illness | Women | The Guardian por Poppy Noor
How To Cook That — YouTube por Ann Reardon
Larissa Bombardi contesta Natalia Pasternak sobre Sri Lanka tornar agricultura 100% orgânica — YouTube por Rádio Brasil Atual, entrevista de Marilu Cabañas
Esse texto é a terceira edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”, pela qual você pode assinar através do link: https://tinyletter.com/FilipeNarciso