Tríptico

Filipe Narciso
6 min readDec 1, 2021

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Ilustração Própria. Arte: Bacon, F. 1972. Triptych August 1972 [Óleo e areia sobre tela]. Tate Gallery, Londres, UK.

I

Se o vazio da tela fosse repartido em três, com os detalhes e as texturas muito mais perceptíveis, o olhar alerta estaria suscetível a continuar dilacerando um conteúdo já desfigurado. Em uma única montagem, a complexidade do exposto é vítima da unidade. Com repartições, as nuances se tornam mais definidas, mais discerníveis e a dificuldade de categorizar se torna uma categoria em si.

Invariavelmente, durante várias semanas, meses do ano, estive pensando nos trípticos de Francis Bacon. Antes só conhecia o nome do utilitarista, mas descobri outro: um artista plástico, gay, que pintava uma tragédia particular. Pesquisei suas obras pela primeira vez em um momento conturbado. Testemunhava, então, uma série de situações nas quais meu medo raptava para si minha intimidade, minha vida interna e o que importava da externa. Exaurido de tentar nomear o que sentia, explorei ao máximo a tristeza oficializando um silêncio exterior que não me permitia há anos. Fecharam-se as portas para o novo e fui obrigado a lidar com aquilo de que estive fugindo a vida toda.

Ali, nos quadros manchados de vermelho com seus personagens dismórficos, se via uma figura com feições quase humanas. E essa figura não é só um homem, mas um amante, uma musa distorcida. Em um tempo em que a atração era ainda mais perigosa do que o é hoje. Jovem. Morto. Autodestruição, autoeliminação, autoaniquilação. Em algum lugar de meus pensamentos, o tríptico se tornou uma alegoria para a vida, a sua passagem e a morte. Não a morte denotativa, porém como a representação do tarot: a morte inevitável, além do controle, que representa um último ato que dá lugar ao início de um novo.

Entretanto, para além da alegoria óbvia, existe mais sobre esse sistema que me admira: o primeiro ponto é a ausência de maniqueísmo. De forma simples, uma divisão em três não é uma divisão em dois. Ainda que permita a existência de conceitos opostos, eles não serão os únicos elementos presentes. Em segundo lugar, para manusear uma ansiedade que por vezes pode ser debilitante, compartimentalizar é um hábito muito eficiente. Às vezes, para evitar minha mente de entrar em uma espiral infinita autodestrutiva, criar subdivisões racionais é tudo que ainda sou capaz de fazer.

No ano mais solitário da minha vida, aprendi muito com as decisões que tomei. Mais ainda, aprendi a me orgulhar das que precisamente me trouxeram a esse espaço vazio. Em meio a uma situação social fria e distante, tive de lidar com todos os sentimentos de solidão, rejeição e exclusão que me assombraram durante toda minha vida. Passar por essa solidão por vezes significava não ter vontade de levantar pelas manhãs. Muitas vezes, sobreviver foi o suficiente. Agora, utilizo o ecrã já manchado, o mesmo ecrã de sempre, para criar uma nova imagem com o que consigo fazer.

II

Mesmo sem um consenso definido, consideremos que a vida humana se inicie a partir do nascimento. Em que momento entra a consciência? Esse monólogo interior aparentemente infinito que um dia irá se acabar. E se essa consciência fosse corrompida desde o princípio? Como uma matriz que fosse destinada ao próprio fim, programada com um tipo de código para a apoptose de seu hospedeiro.

Só permanecemos vivos enquanto falamos com nós mesmos. Todos os dias e todos os momentos de todos os dias são marcados por essa conversa. E um olhar. Um simples olhar foi o suficiente para que todo o amor virasse desconfiança, para que todos os dias fossem marcados pela evasão, para que a vida até aqui fosse gasta pensando em morte.

E essa cicatriz formada não se cura mesmo após os problemas serem resolvidos. A marca permanece, tirando a possibilidade de uma interpessoalidade saudável. O único sonho constante parece mais impossível do que os pensamentos absurdos de grandeza que chegam à superfície de vez em quando.

Em minhas tentativas de reverter as condições, não considerei que encontrar o que eu procurava poderia ser mais assustador do que continuar buscando. A felicidade envolta pelo medo se tornou difícil de sustentar. Se pudesse conversar com a criança abandonada com essa consciência parasita, a deixaria um último aviso: “Um dia, você vai se sentir tão feliz que vai chorar de medo de perder o que tem”.

Não sei se faria diferença. Talvez tudo não seja mais do que uma profecia autorrealizável. Não exista uma cura, não tenha escapatória dos eventos que se desenrolam. Esforços são inúteis contra um fim programado desde o princípio.

III

A maioria das relações do mundo não vingará. A experiência, ainda assim, permanece. Eternizado em três, eternizado como três, como um e como um todo, Dyer é apresentado para olhos atentos e desconhecidos.

Penso, olhando a massa bege e humanóide marcada por vermelho e preto, se seria mais fácil representar os sorrisos, as carícias, os hábitos e tantos outros pequenos detalhes. Respondo a mim mesmo quando concluo que preferiria guardar essas perspectivas escondidas comigo, ainda mais por serem impossíveis de se observar verdadeiramente como um desconhecido, um intruso. Memórias que para sempre estarão presentes, em algum lugar no fundo da essência.

Não tive coragem de transformar esses pensamentos em um diálogo. Às vezes, sinto que perdi a habilidade de ser emocionalmente sincero. Outras, tenho a impressão de que nunca o fui. Acho que minha crítica a visão externa só seja uma forma de fugir de reconhecer que sou quem mais se desdobra para ela. Estar com você deveria ser a única coisa que importa, mas não sinto que isso seja possível.

Sei, entretanto, por intuição, que o universo tem um amor infinito por você. Sinto desde quando conversamos pela primeira vez. Existe uma proteção, um cuidado, um carinho incompreensível e inexplicável que é só seu. Mesmo nos dias mais difíceis, você é protegido.

Quando enfim a dor física que atingia meu peito cessou, descobri que o entorpecimento continuaria. Continuariam ali o apego a todas as coisas que gostaria de ter feito por você sem a sua permissão. Os dias difíceis e intermináveis, desde a infância, em que pensei que a única coisa que ainda me importava era lutar pelo meu direito de amar outra pessoa. Até mesmo todas as expectativas que depositei em você sem que soubesse e a dor que causei por não ter coragem de mudar ou ter a coragem de me reafirmar que não preciso mudar. As noites de insônia por sonhar acordado em estar com você.

Essa espécie de dor latente e adormecida traz o conforto das lembranças de tempos melhores. Mas amar não é sinônimo de dor, ou ao menos não deveria ser. Por isso eu preciso me forçar a entender que não preciso ser digno de amor. Mais ainda, que não preciso me martirizar para fazer outra pessoa feliz. Não quero continuar me submetendo a viver à sombra dessa história.

Talvez eu esteja errado, mas me dou o direito de errar dessa vez, porque quero ao menos que a decisão seja minha. Quero errar e não sentir que isso é o fim do mundo. Quero sentir que minha vida continua, apesar de tudo.

Minha esperança de tornar o inatingível em tangível foi se esvaindo cada vez mais até que toda a força de vontade não fosse mais suficiente. Uma pintura que me marcaria para sempre, tão impossível quanto realidade: a promessa de um corpo que nunca toquei.

Hoje, no grotesco de forma humana que sobra na tela, vejo quem ele era, o que costumávamos ser e o que sou hoje. Respiro fundo e tento desviar o olhar. Já faz algum tempo.

Me entrego ao que tenho evitado reconhecer como certo. E tento me acalmar porque estou com muito medo. Se eu pudesse tentar ser forte uma primeira e última vez, gostaria de ao menos dizer:

Está tudo bem, amor. Daqui para frente, sua vida será cada vez melhor. Espero que eu tenha sido bom para você.

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