Terapia de exposição

Filipe Narciso
4 min readDec 31, 2022

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Em torno de dois anos atrás, quando o primeiro ano de pandemia chegava ao fim (enquanto todos seus desdobramentos bizarros e fúnebres estavam longe de finalizados), defendi em uma produção que considerar 2020 um “ano ruim” como uma espécie de caso isolado era contra-produtivo. O argumento era que a fragmentação da realidade dificultava a compreensão em larga escala dos eventos: no caso do contexto pandêmico, a evidência de que todos seus acontecimentos foram causalidade do modelo econômico vigente. Se 2020 tinha sido um ano ruim, 2021 não ficaria tão para trás assim, pois não são entidades realmente separadas.

Ainda acredito no que disse, mas hoje tento abrir espaço a um pouco mais de nuance, no sentido de que não é possível evitar recortes temporais. É um processo natural e saudável para a compreensão das coisas. Quebrar para digerir, traçar para delimitar, definir um escopo possível.

O último ano foi, em várias situações, humilhante. Adentrar a vida adulta e tomar as próprias decisões pode ser prazeroso, porém também é tortuoso e pouco confortável. Mas, existe um poder oculto na sensação de vergonha em aprender o que já se deveria saber, em obter as primeiras referências necessárias para construir relações e buscar uma vida emocionalmente saudável. Há uma libertação da ignorância, da impossibilidade, da impotência. Em um mundo que tenta aparar e controlar todas as vivências e experiências enquanto corpo queer, frustrar expectativas e lutar pela reinvindicações do desejo é um processo especial.

Pela primeira vez, optei por tentar estabelecer o foco na experiência ao invés dos resultados. Em sentir o desconforto para conseguir compreender sua magnitude. Às vezes, o pior que pode acontecer é exatamente o que acaba acontecendo, mas também isso chega a um fim. E também isso é um norte possível (ainda que seja do que não fazer).

Um desafio importante para a compreensão do que seria humanidade e existência é a importância de passado e futuro para quem somos. Talvez, daqui a alguns anos, meses, ou até dias, eu me arrependa de tudo que tenha escrito e publicado hoje. Tomara que sim. Só espero poder sentir alguma coisa ao ler o que um dia escrevi, assim como torço que outros sejam capazes de sentir algo sobre si mesmas a partir de minhas palavras.

Gosto da proposta do ano novo e sua inerente dualidade entre tradição e renovação. Por isso, quero deixá-los uma nota final que seja carregada de meu afeto e sentimento por todo o apoio com esse projeto nos últimos meses e um desejo honesto de um feliz e amoroso ano pela frente. Fico radiante em saber que tenho o apoio de pessoas tão queridas e atenciosas. Que 2023 seja um ano especial a todos vocês e que possamos estar sempre abertos a tentar e falhar.

Para fechar 2022, recomendo o primeiro episódio de uma série de vídeos de análise da obra Anti Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Admiro o ponto de Deleuze e Guattari de subverter a noção de ID cunhada pela psicanálise e adentrar a experiência revolucionária dos desejos e das conexões humanas. Ainda assim, tendo em vista certos detalhes de produção que considero um pouco equivocados, recomendo um consumo levemente mais crítico de alguns aspectos do vídeo.

Também recomendo o texto Removing “identity” from “persons”- Derek Parfit de autoria de Noah Levin que analisa a percepção de identidade e moralidade para o filósofo Derek Parfit. Um dos pontos que gostaria de levantar, no entanto, é que me recordei do seu paradoxo do teletransporte como uma versão diferente e muito mais assustadora que me contaram. Nela, ao adentrar o teletransporte, você estaria acordado e poderia ver de dentro da cabine uma câmera mostrando o lugar onde você irá aparecer. Ao começar o processo, a equipe de manutenção da máquina o envia uma notificação afirmando que há um delay de alguns segundos do seu lado do transporte, mas que logo mais você chegará a seu destino. No entanto, ao olhar na câmera, você consegue ver uma versão de você aparecer no lugar onde você deveria estar, segundos antes da desintegração iminente da sua consciência desse lado. Também queria apontar que Parfit faleceu no ano novo de 2017, então podemos celebrar em seu aniversário de morte a continuidade de sua existência a partir do contato com aquilo que um dia produziu.

E, como última recomendação de leitura do ano, optei pela reportagem The Art Dealer Families Who Run the New York Art Market de Rachel Corbett que trata de um resumo das principais famílias do mercado de arte nova iorquino e, consequentemente, alguns dos nomes mais influentes no mundo inteiro para as definições de arte. A razão para fechar o ano com ela pode parecer nebulosa, mas é que gostaria de explorar como a plena existência de um mercado de arte questiona quaisquer outros critérios argumentativos utilizados para validar superficialmente a arte mainstream. Trata-se de mais uma indústria auto serviente e retroalimentada pela sociedade burguesa, esvaziada de valores criativos. E, a partir disso, possivelmente construir uma ponte discursiva e debatível sobre essa relação com qualquer outra forma de “criação de conteúdo” (uma expressão que considero detestável, mas é genérica o suficiente para abarcar.. até isso aqui) em tempos contemporâneos.

Esse texto é a quarta edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”, pela qual você pode assinar através do link: https://tinyletter.com/FilipeNarciso

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