Sobre maniqueísmos
maniqueísmo
substantivo masculino
1. RELIGIÃO
dualismo religioso sincretista que se originou na Pérsia e foi amplamente difundido no Império Romano (sIII d.C. e IV d.C.), cuja doutrina consistia basicamente em afirmar a existência de um conflito cósmico entre o reino da luz (o Bem) e o das sombras (o Mal), em localizar a matéria e a carne no reino das sombras, e em afirmar que ao homem se impunha o dever de ajudar à vitória do Bem por meio de práticas ascéticas, esp. evitando a procriação e os alimentos de origem animal.
2. POR EXTENSÃO
qualquer visão do mundo que o divide em poderes opostos e incompatíveis.
reconhecimento de que a matéria é intrinsecamente má.
No início do temido mês de outubro percebi que, logo na segunda edição, tinha me colocado em uma situação delicada: lançaria meus pequenos pensamentos em forma de texto um dia depois de uma das eleições mais importantes da história do país (até aqui). E, por isso mesmo, não vi possibilidade alguma de falar sobre outra coisa.
Entretanto, se o debate público e político desse último mês inteiro foi completamente tumultuado de certos assuntos, gostaria de apontar um holofote singelo a um fenômeno um pouco nebuloso e fugidio que sempre me assombrou a vida inteira.
Venho de uma família católica do interior do estado de São Paulo. Uma das instituições basilares da minha criação foi a igreja do bairro, localizada na rua de cima da minha casa. Quando tinha entre oito e dez anos, me apaixonei por mitologia grega por conta da saga Percy Jackson e, ao mesmo tempo, meu núcleo familiar havia se afastado significativamente da igreja enquanto estrutura e instituição.
Então sempre achei difícil acreditar em divindades e seres transcendentes. Para mim, se tratavam de personagens de uma grande narrativa a qual aceitava porque era importante para os outros. Mas orava, e orei por um bom tempo de minha vida.
No entanto, me perguntava se Deus realmente era uma figura a qual eu me identificava e que me acolhia, mesmo teoricamente sendo feito em sua imagem e semelhança. Pela forma como outras pessoas me tratavam desde antes da minha própria consciência do que tinha de diferente, não. Se Deus era o bem, então eu só poderia ser mal, mesmo que contra minha vontade.
Sinto que a maior parte da minha vida até aqui foi unicamente destinada a destruir tudo que me foi ensinado e, às vezes, isso me dá um medo existencial enorme de que, se eu morrer amanhã, eu vou ter perdido a maior parte da vida somente sobrevivendo a meus próprios pensamentos destrutivos.
Hoje, mesmo tendo cicatrizado diversos traumas sobre minha identidade enquanto homem cis gay, é difícil resistir ao apelo de ser uma espécie de “minoria modelo”. Tentar esconder as ambiguidades da minha moralidade, ignorar meus desejos e vontades, ser discreto e reservado.
Ou então me colocar em outro extremo. Rivalizar com todos os meus pares, ser individualista ao máximo, me convencer de que ninguém entende como me sinto e que não tenho como desenvolver intimidade com ninguém, especialmente com uma ideia de comunidade.
E acho que o desafiador tem sido não simplificar minha narrativa pessoal a conceitos definitivos e fechados. Quando reconheço que posso ser, ao mesmo tempo, compreensivo e perfeccionista, despretensioso e pedante, sério e irreverente, também consigo ver e aceitar as ambiguidades morais de outras pessoas. E, consequentemente, não crio mártires ou párias, evito falsas equivalências e me sinto menos performativo.
Minha primeira recomendação e maior referência para a edição desse mês é o texto Full Moon Mixtape: Aries, de Jude Doyle, em que ele conta um pouco da sua transformação pessoal, com ênfase em seu processo de transição enquanto figura pública relativamente conhecida na internet. Um texto sensível, engraçado, forte e íntimo. Uma das coisas mais bonitas que li até hoje.
Minha segunda recomendação é a entrevista do escritor de histórias em quadrinhos Alan Moore, criador de Watchmen, para Sam Leith. Uma das principais razões que o coloco aqui é que Moore denuncia a infantilização das narrativas e decorrente binarização do mundo em moralidades herméticas como um dos principais sintomas do fascismo na atualidade.
Dedico minha única recomendação em português dessa edição a meus amigos próximos, a amigos passados, a pessoas que conheci antes de se conhecerem, a quem confiou em mim e a quem me fez me sentir seguro. Muito da minha identidade hoje só foi possível pelos vínculos de amizade que fiz ao longo da vida, porque a amizade sempre foi a relação social em que menos me senti impelido a desempenhar um papel. Em todos os momentos que achei mais difícil gostar de mim, essas pessoas viram algo em mim que eu não era capaz de ver.
Por fim, recomendo a reportagem de Poppy Noor que compila imagens dos tecidos presentes no útero até a décima semana de gravidez. Ainda que a matéria original seja em inglês, o importante da reportagem é seu conteúdo imagético e legendas, que podem ser traduzidas automaticamente sem grandes perdas quanto ao sentido original. Um dos motivos principais que optei por essa matéria é que, em inglês, a nomenclatura popular para o movimento a favor do direito ao aborto é pro-choice (a favor da escolha), enquanto o movimento contrário é denominado pro-life (a favor da vida), palavras que semanticamente não possuem qualquer condição de equivalência (afinal se um lado é a favor da vida, a implicação é que o outro esteja a favor da morte) e disseminar essas nomenclaturas falsamente equivalentes pode ser severamente contraprodutivo para o debate público.
Penso, hoje, talvez não enquanto jornalista, mas enquanto profissional de comunicação, e tomando por base a teoria de Axel Bruns, que minha função é ser um gatewatcher: as informações existem e estão aí ao alcance a todo momento. O melhor que posso fazer é uma curadoria personalizada daquelas que me deparei esses últimos tempos e acompanhá-las de uma reflexão aberta, a fim de tentar fazer com que essas informações não sejam só passadas, mas propriamente consumidas. Não acredito em informação imparcial, assim como não acredito em ciência imparcial: o próprio processo de conhecimento e aprendizado é, por si só, político. E deve ser tratado como tal.
Outro ponto importante que não havia mencionado na newsletter anterior é que não acredito em gênios ou qualquer forma de baboseira de propaganda meritocrática. Outra razão para minha preferência por esse formato de divulgação é, em essência, fácil de compreender, mas difícil de se agarrar no cotidiano contemporâneo: toda forma de conhecimento humano é coletiva. Toda descoberta, teoria ou invenção envolve um longo processo histórico-social de construção do saber de uma sociedade. Portanto, o que escrevo não tão somente é meu, mas é de todas as pessoas que menciono, e de tantas que não menciono, na newsletter que lê agora.
Faz alguns anos que me sinto um tanto receoso quanto a outubro. Principalmente, pelos eventos que marcaram outubro de quatro anos atrás. Foi naquele outubro que fui ao meu primeiro funeral. Foi naquele outubro que soube pela primeira vez do suicídio de alguém da minha idade. Foi em outubro que, após os resultados das eleições, tive uma crise de ansiedade durante a aula e voltei para casa sem forças para seguir lutando.
Mas agora me vejo esperançoso porque, enquanto escrevo essas palavras, lembro da grande celebração que testemunhei poucas horas atrás. A comemoração em nome de nós que ficamos e por aqueles que, infelizmente, se foram. Ainda assim, os desafios continuam e as escalas e apostas estão altas em um mundo tão efervescente quanto agora.
Não sou um grande otimista, mas a sensação de vitória mesmo após o aparelhamento da grande maioria das instituições é boa demais para ser diminuída. Não acredito em milagres, mas considerando a melhoria da minha qualidade de vida de minha adolescência para cá, especialmente da cabeça para dentro, passei a ter uma tendência natural a crer na possibilidade de dias melhores, por mais difícil que o agora seja. E, se eles não vierem, e um dia meu último pensamento passar por minha cabeça, creio que vou estar feliz em saber que consegui experimentar tanta felicidade genuína sendo eu mesmo.
Seguimos.
Até o próximo mês.
Recomendações
Full Moon Mixtape: Aries por Jude Doyle
Entrevista de Alan Moore para Sam Leith. Uma matéria da IGN Brasil, de Víctor Aliaga, possui trechos traduzidos da entrevista.
A amizade é uma raiz da liberdade por Anita B.
What a pregnancy actually looks like before 10 weeks — in pictures por Poppy Noor
Esse texto é a segunda edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”, pela qual você pode assinar através do link: https://tinyletter.com/FilipeNarciso