Serenidade
Eu sempre me apaixonei com facilidade. Tenho momentos exatos de perceber estar apaixonado e todos eles não possuem relação entre o sentimento e o que o outro faz para mim. São eventos ligados a coisas que você enxerga em alguém e não consegue esquecer, desacostumar, abrir mão. São peculiaridades, inferências do não-dito que tornam uma pessoa um universo. Me lembro que, nos anos do ensino médio, percebi que estava apaixonado pelo meu melhor amigo quando, sem querer em uma brincadeira, passei uma das minhas unhas pela palma da sua mão, ao que ele deu uma risada ingênua e despreocupada e me disse que fazia cócegas. Pensei que queria viver essa mesma cena milhares de milhões de vezes até o dia em que eu morresse, desse mesmo jeito. Queria que ela estivesse ainda tão viva na minha memória como estava naquela época.
O primeiro garoto por quem me apaixonei era dois anos mais velho do que eu. Eu tinha 12 anos enquanto ele estava no último ano do ensino fundamental. Gostar de garotos sempre havia sido essa ideia no fundo da mente, uma possibilidade distante, mas nunca tinha encontrado alguém que me fizesse pensar nisso como algo a ser investido. A verdade é que os garotos sempre foram muito cruéis, até mesmo os poucos amigos que tinha eram frios, distantes e infantis demais. Eu sempre fui uma criança que se considerava madura, que lia livros e que era responsável. Quando minha adolescência começou, eu me convenci a gostar de uma amiga minha, consegui até chorar por ela uma vez, mas não foi nada como o sentimento que viria depois.
Como bom observador do mundo ao meu redor, eu já sabia que ele existia. Estudávamos na mesma escola e eu havia reparado que ele era bonito em outras situações, mas nunca tinha pensado demais sobre ele. Até o dia em que, por ocasião, estávamos os dois esperando em frente à secretaria e ele decidiu conversar comigo. Apesar de eu me sentar longe de onde ele estava, colocar minha enorme mochila em meu colo e decidir esperar o tempo passar, ele se levantou, andou até a cadeira à minha frente e se sentou, perguntando meu nome. Não soube como reagir, não fazia sentido algum para mim, até mesmo para simpatia era um pouco demais. Mas, depois de um breve momento de despreparo, o respondi e começamos a conversar. Falamos sobre professores, aulas, livros. Ele comandou a situação e eu só rebatia suas perguntas e demonstrava interesse pelo que dizia. Não durou muito tempo, eu tinha que ir e ele também, mas eu fiquei extasiado. Nunca tinha me sentido tão visto por alguém e, mais ainda, não era só alguém.
Para mim, ele era inatingível. Não se tratava apenas de uma questão de beleza ou simpatia ou inteligência, era uma questão de equilíbrio, de perfeita simetria. Depois dessa primeira conversa, as condições nos levaram a conversar poucas outras vezes, todas igualmente breves, superficiais e inesquecíveis. Ele sempre tomava a iniciativa, se lembrava de mim sem se lembrar do meu nome. Eu sempre me encontrava sozinho e ele falava comigo rapidamente antes de ir. Quanto mais eu pensava nos cenários e nos momentos que tínhamos, mais dependente eu me tornava. Ficava sonhando acordado, me perguntando, esperando que hoje ele falaria comigo de novo, que tudo se alinharia perfeitamente para que me visse mais uma vez e, dessa vez, ele ficasse um pouco mais.
Isso nunca aconteceu. Ele se formou no final daquele ano e nunca mais nos falamos.
Eu o vi outras três vezes. Duas dessas foram no ano seguinte, sem ele me ver de volta. A última vez que o vi nós dois já éramos adultos. Ele era praticamente o mesmo, ainda tinha a mesma expressão jovem e tranquila de sempre, só era mais homem do que garoto. Parecia feliz, como sempre pareceu. Ele sequer olhou na minha direção e foi embora. Apesar do sentimento antigo de nostalgia, do descompassar do coração ao ver um primeiro amor, minha vida também tinha continuado. Eu era outra pessoa. Mas eu ainda queria ser como ele.
Uma das coisas que eu mais amava sobre ele eram seus olhos. Olhos sempre foram uma parte importante de qualquer pessoa para mim, sendo olhos bonitos um dos maiores encantos que alguém poderia ter. Tinha algo de especial sobre o olhar dele. Apesar de seus olhos serem grandes, redondos e bem abertos, eles sempre expressavam um semblante de sossego, de simples calmaria. Quando conversamos a primeira vez, frente a frente sentados em uma mesa, apesar de estar queimando com a vergonha da paixão e da atração, ele me deixava à vontade e eu respondia a todas as suas perguntas com muita tranquilidade. Era como se ele fosse um terapeuta que, apenas com o olhar, era capaz de enxergar todos os meus traumas e tudo que tentava esconder e que me sugeria, com paciência e carinho, que relaxar um pouco me faria bem.
Nós éramos fisicamente parecidos, eu também tenho olhos grandes e escuros, cabelos escuros levemente bagunçados, havia algo sobre ele que me lembrava uma versão aprimorada de mim, alguém que eu poderia ser se tivesse esforço o suficiente. Diferente dos olhos calmos que ele possuía, eu sempre tive um olhar de desespero. É o tipo de coisa que você descobre sobre você mesmo através das fotos que outras pessoas tiram de você. Nos primeiros anos da minha adolescência, eu odiava fotos e, até hoje, me acostumei a fechar meus olhos um pouco sempre que vão tirar uma foto minha para não correr o risco de estar, involuntariamente, com um olhar freneticamente aberto para a câmera. Minha existência sempre me foi motivo de desconforto. Queria poder levar minha vida com a mesma leveza com que ele parecia levar a dele. Queria poder ter a mesma segurança de ser bonito e simpático com que ele se aproximava dos outros e comandava ambientes. Diferentemente dele, eu sempre inferi que os rapazes que não conheço são violentos e as meninas são esnobes.
Ele era tudo que eu queria ser. Sei que ninguém admite não querer o bem, mas eu realmente me via sendo caridoso, amável e gentil com pobres coitados como ele era comigo. O problema é que eu não queria ser um desses desafortunados. Mesmo aos 14 anos de idade, ele tinha um sorriso perfeito, aberto e branco, dentes corretamente alinhados e uma abertura da boca perfeita, tudo na medida correta. Eu usei aparelhos dos 11 aos 17 anos, alguns dos meus dentes nasceram sem espaço para encaixar na barreira de dentes que se forma na boca, então eles ficaram para trás. Por isso, meu sorriso tinha dois grande vácuos onde meus dentes nasceram para trás, e foram 4 anos gastos apenas tentando ajeitar esses espaços vazios. Seu sorriso sempre foi atraente, confiante e, paradoxalmente, humilde. Quando ele sorria, parecia que ele o convidava a sorrir de volta, era acolhedor, reconfortante. Meu sorriso sempre foi incerto, preocupado, mal encaixado.
Ele não era descolado, nem parecia se esforçar para ser legal, ele apenas era elegante. Mesmo com uma calça jeans slim, um all star azul-escuro de cano baixo e uma blusa sem estampa sobre o corpo, ele sempre parecia bem vestido e tinha uma postura que exalava carisma. Ele era bastante popular com as garotas, o testemunhei diversas vezes conversando com duas, três garotas enquanto elas claramente forçavam risadas e reações ao que ele dizia. Algumas amigas minhas me disseram estarem apaixonadas por ele, ao que eu fingi surpresa e disse que não o conhecia. Descobri, anos mais tarde, que ele era gay também através de uma amiga. Mesmo sabendo que isso não significava nada para mim, respirei um pouco aliviado, pois seria uma desonra para mim ter sido tão apaixonado por um hétero. Eu percebi, mesmo naquela época, que meu amor platônico não era só impossível, ele era injusto. Ele tinha todas essas qualidades, charmes, encantos irresistíveis, enquanto eu era só um garoto de 12 anos que, de tanta vergonha que tinha do meu corpo, não gostava de tirar blusas de frio em público. Quando eu ia com grandes moletons escuros para a escola, o que era frequente, eu pegava o ônibus para casa debaixo do sol do meio dia ainda com aquele gigante pedaço de pano com estampa de uma banda de rock. Tinha medo de tentar tirá-lo e mostrar um pouco da minha barriga ou a barra da minha cueca, então estava fixado ao meu corpo, me protegia. Não havia como, em qualquer cenário, que ele se apaixonasse por mim também, mesmo que estivesse tudo bem sobre ambos sermos rapazes, algo que não era comum no interior de São Paulo na primeira metade dos anos 2010. Precisava me contentar em só o admirar e, de vez em quando, ficar feliz que ele dispunha um pouco do tempo dele para deixar minha existência um pouco menos solitária.
Até hoje, mesmo passados tantos anos, mesmo não sentindo mais nada, ainda penso nesse garoto. Penso que o momento em que o amei foi das experiências mais intensas e cheias de adrenalina que tive na vida. Foi um sentimento inescapável de discernimento, como ser absorvido por uma criatura maior, uma emoção maior, uma natureza infinitamente mais significativa do que eu conseguiria entender. Eu sentia meu coração, eu sentia meu respirar, eu sentia minhas sinapses, eu sentia cada detalhe do que acontecia no maquinário do meu corpo, como se eu tivesse caído nessa criatura mecânica que era eu pela primeira vez na vida. Ele, que nunca nem se lembrava do meu nome, nem deve se recordar que existo. Enquanto isso, eu vivo todos os dias esperando ser um pouco mais como ele e um pouco menos como eu.
Percebi que eu estava apaixonado no dia que nos conversamos a primeira vez. Enquanto eu escavava as unhas embaixo da mesa de madeira entre nós dois, ele me mostrou um desenho que tinha feito aquele dia, me contou que já tinha lido o livro que eu estava segurando e me disse que eu poderia gostar do que ele estava lendo agora, falamos sobre os professores que gostávamos, e reparei em cada detalhe do seu rosto e do seu semblante sem qualquer remorso ou medo. Me sentia à vontade, convidado para amá-lo, diferentemente de todos os outros rapazes que pareciam odiar se você os olhasse com qualquer forma de admiração ou carinho. Ele não parecia ter qualquer carinho especial por mim, só viu que eu estava solitário e queria me deixar mais feliz e menos sozinho. E ele conseguiu, assim como deve ter conseguido com muitas outras pessoas. Apesar de algum nível de ciúmes ou inveja, fiquei apaixonado não por ser comigo, mas sim porque ele se importava. Espero, algum dia, me importar também.