Primeiro, a água. Depois os comprimidos

Filipe Narciso
3 min readMar 31, 2023

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O ano sempre parece só começar de verdade com o fim do verão e o início do outono. No início desse mês, esqueci de tomar meu ansiolítico no começo do dia e só me recordei quando estava com uma pessoa especial, que me viu chorar centenas de vezes e conhece o pior e o melhor de mim. Em uma pequena demonstração de quebra de protocolo, vi ela ficar chocada ao perceber que eu enchia minha boca com água para então mandar meu comprimido garganta abaixo em uma única tragada.

Não aprendi a fazer isso com ninguém. Me ensinei quando criança por uma questão de incômodo: odeio o sabor amargo que sobra na boca após meros milissegundos em que um forte medicamento entra em contato com a saliva. Como nunca fui repreendido por isso, se tornou natural. Mesmo vendo outras pessoas fazerem o processo inverso, nunca me questionei sobre o modo como eu fazia as coisas.

Expliquei essa história e demos risada. Ela me disse que ia tentar. No mesmo dia, comentei sobre a frase “ser amado é ser transformado” e disse que sempre me senti uma grande colcha de retalhos costurada e rasgada por pessoas que amei, pessoas que me amaram e pessoas que admiro/admirei. Disse que gostava de grandes demonstrações de amor, mas que sentia que a parte mais bonita são as pequenas coisas que conectam nossos pensamentos a alguém.

Por fluxos naturais da vida, vou ter que me acostumar a um novo cotidiano em que nossos encontros não são mais parte da minha rotina. De todas as coisas que poderiam fazê-la se lembrar de mim, toda minha raiva, toda minha insegurança, todo meu amor, todas as palavras bonitas e pensadas demais que falei, nunca pensei que um ritual tão prático e inconsciente como esse poderia ser a principal. Até que, no nosso último encontro, ela me admitiu: “você talvez seja a primeira pessoa em que penso todos os dias. Agora, sempre que vou tomar meus remédios assim que acordo, uso a técnica que aprendi com você”.

Primeira e principal leitura que recomendo esse mês é o prefácio escrito pelo professor de direito e atual Ministro de Direitos Humanos e da Cidadania Silvio Luiz de Almeida para o livro “Armadilha da Identidade” de Asad Haider. Com uma clareza excepcional, Silvio Almeida explica a importância inescapável das identidades individuais para a definição do ser e das perspectivas de suas lutas sociais, mas simultaneamente critica a fragmentação da luta anticapitalista a mera conquistas de direitos se abstendo de um norte libertador para todas as minorias sociais, sem exceções.

Minha segunda recomendação do mês é o artigo The big lie that keeps the Uber beezle alive. Um texto excepcional em investigar e denotar a falácia socialmente aceita que empresas como Uber representam para o modo capitalista contemporâneo. Além disso, o texto tem essa frase:“True believers in our failing market system continue to insist that if we just capitalism a little harder, everything will work out”.

Fechando a edição, recomendo a reportagem Italy leaves children of same-sex parents in limbo que destrincha a maneira como o atual governo de Giorgia Meloni tem atacado os direitos de pessoas queer na Itália. Percebo ultimamente uma ênfase midiática, em especial da mídia brasileira, de construir uma imagem da primeira-ministra como uma “reformista” para o país ao invés de verdadeiramente pontuarem seu perfil reacionário e fascista.

Esse texto é a sétima edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”, pela qual você pode assinar através do link: https://tinyletter.com/FilipeNarciso

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