Pressão

Filipe Narciso
5 min readDec 12, 2024

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Ilustração própria. Imagem por Dyet/FreeImages.

Depois de muitos anos tentando me esquecer, me forçando a seguir em frente, me convencendo a negar aquele dia, decidi que não tenho mais motivos para esconder essa história. Sei que posso morrer a qualquer instante, ainda mais na idade em que me encontro, e não quero que isso aconteça sem relatar minha experiência com o impossível, com o horror que testemunhei.

Em agosto de 2026, fiz uma viagem para o litoral. Apesar do calor que fazia naquela semana, era fora de temporada e toda a cidade estava bem mais vazia do que me lembrava das outras vezes que a tinha visitado. Havia uma praça na orla da praia próxima a onde estávamos hospedados, de frente para o mar, com um campo de futebol ao lado. Talvez por praticamente todas as casas da região serem de veraneio, destinadas para a alta temporada de turismo, ela estava sempre vazia naqueles dias. A praia ainda possuía vários frequentadores em outras partes, mas quase ninguém perto daquela praça em particular. Era possível se sentar ali e observar com calma tudo que acontecia, ver o mar infinito a sua frente, sem preocupações. Todos os dias pela manhã, quando o sol estava nascendo, eu saía de casa para andar pela orla da praia, sentar um pouco em um banco específico, de onde eu poderia observar o mar por alguns minutos e voltar para a casa em que estava. Apesar de não estar sozinho em minha viagem, era algo que gostava de fazer sozinho, tirar esse momento para mim.

Era durante a semana, talvez uma terça ou quarta-feira, quando um homem veio se aproximando com dificuldade enquanto eu encarava o mar. Demorei para reconhecer que ele vinha até mim, estava hipnotizado pelo horizonte, e isso não havia acontecido nenhuma outra vez daqueles dias. Pensei que ele fosse me pedir dinheiro, mas quando consegui olhar melhor para seu rosto, ele parecia angustiado. Uma aflição estava impressa não só em seu rosto, mas em toda sua movimentação do corpo. Eu o perguntei se ele estava bem, ao que ele com muita dificuldade conseguiu me dizer que não, que sentia que ia explodir. Pedi que ele tivesse calma e, apesar do homem estar sofrendo em minha frente, fui muito cauteloso ao puxar meu celular e tentar ligar para a emergência. Virei levemente o corpo para o lado e olhei para baixo para discar os três números da emergência. Lembro-me com clareza de, na hora, bastante nervoso, estar em dúvida de quais eram mesmo os números da emergência. Foi quando ouvi um barulho impossível de discernir de massa sendo amassada ao meu lado, senti um horror subir pela minha espinha e segurei o impulso de olhar. Minhas mãos ainda seguravam o celular, meu dedo na tela prestes a apertar o dígito 8, quando finalmente me virei para o homem e não acreditei no que vi. Aquele senhor, mais alto e forte do que eu, não estava mais ali, havia apenas uma massa gelatinosa na minha frente. Sua figura toda passou a se estruturar como se os ossos fossem evaporados, ou nunca tivessem estado ali, e aquela carne era uma mistura de todos os órgãos como uma coisa só, uma grande víscera ambulante. As roupas pareciam ter sido evaporadas, não vi nenhum resíduo de nada que não fosse carne humana. Um líquido visivelmente viscoso escorria por toda parte, com uma cor entre o avermelhado e o amarelado. Por qualquer razão, talvez por já se tratarem de uma formação de carne bastante gelatinosa, os olhos permaneceram intactos na gosma de cheiro férrico e me encaravam de volta apavorados. Dava para ver que a consciência ainda estava ali, completa, gritando por mim, pedindo que eu fizesse alguma coisa, implorando pela minha ajuda.

Não me orgulho do que fiz depois, nem quero que esse relato diminua minha covardia, mas um medo primordial se apossou de mim quando tive a realização de que precisava agir nessa situação. A princípio, não consegui me mexer. Fiquei em silêncio encarando de volta aqueles olhos assustados com o mesmo pavor com que eles olhavam para mim. Não gritei, não simulei qualquer barulho além de um arfar assustado, sentia que se alguém nos encontrasse, tudo aquilo seria real. Ficamos nos encarando em silêncio absoluto pelo momento mais longo da minha vida. Seu olhar me dizia que ele gritava para mim, sem parar, seja de dor ou desespero, mas nada saía. Esse momento infinito só chegou ao fim quando finalmente compreendi aquele evento até certo ponto, quando fui capaz de processar o absurdo do que estava a minha frente, mas, o mais importante, quando entendi minha relevância para aquela vida e o papel que eu tinha que prestar.

Eu me virei para trás e corri o mais rápido que pude. Saí correndo com o coração pulsando sentindo que sangue poderia jorrar da minha garganta a qualquer instante, sentia que aquilo poderia me alcançar caso me movesse um passo mais devagar. Independente do quanto me afastava, não conseguia esquecer aquele cheiro, o cheiro de carne queimada, de sangue fervendo, um cheiro tão absurdamente cheio de vida, de matéria orgânica crua, que me colocou em dúvida se algo também acontecia dentro de mim.

Corri sem parar pelo que pareceu ser para sempre. Não me recordo de quase nada do que aconteceu depois que fugi, não me lembro dos lugares por onde passei, de onde parei, como acabei em casa. Queria tirar aquela imagem da minha cabeça, queria esquecer do que vi, senti que eu havia testemunhado conhecimento proibido e que pagaria por isso para sempre. Se eu agisse como se nada tivesse acontecido, talvez eu seria poupado. Não dormi aquela noite, não conseguia fazer nada. Nada havia passado nos jornais, nenhum comentário da região chegou até mim, era como se nada tivesse acontecido. Duvidei da minha sanidade. Decidi que precisava retornar lá, enfrentar meus medos e testemunhar se o que acontecera fora real.

Passei por ali no dia seguinte, no mesmo horário. O sol ainda nascia no horizonte, as sombras ainda estavam bastante densas, e estava lá, no concreto do asfalto, uma grande mancha indistinta, levemente avermelhada, exatamente no lugar em que me lembrava. Vários urubus ainda rodeavam o lugar, assentados em postes, andando pela areia da praia, apoiados nas barras metálicas do campo de futebol. Sentia que eles me encaravam, me chantageando. Sabiam do meu segredo e gostariam que eu soubesse que haviam resolvido tudo pra mim. Eu encarei a mancha no chão debaixo dos meus pés, senti a superfície grudenta debaixo do meu calçado, observei cada detalhe para garantir que nada havia sobrado. Quando finalmente cheguei à conclusão de que mais nada estava ali, me sentei no banco que sempre costumava me sentar, encarei o mar por vários minutos uma última vez e voltei para casa.

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