Pneumotórax

Filipe Narciso
6 min readMar 31, 2024

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Existe um poder, um terror psicológico tão forte sobre a ansiedade. Quase místico, animalesco, anti natural, incivilizado. Como se prestes a me transformar em algo horrível, minha garganta fecha, o suor começa a escorrer pela testa, meu coração acelera, a atenção fica alerta e dispersa. De repente, tudo é sobre correr ou morrer, matar ou ser morto. Conforme fui crescendo, aprendi a sobreviver. Se não posso correr, então preciso matar.

Depois de tanto deixar para trás tudo que me ameaçava, parece que todas as pontas soltas da minha vida se voltaram contra mim e me ataram em um nó maior do que eu, que minha raiva, que meus medos. Precisei admitir a falta que sentia. Ouvi Carly Simon cantar para mim You’re so vain/You probably think this song is about you. Tentei de novo, dessa vez para consertar o que eu mesmo destruí para me proteger. Percebi que eu talvez seja mais frágil do que me dou crédito. Enganar aos outros é uma habilidade que aprendi tentando esconder desde cedo que era gay (todos sempre souberam). Enganar a mim mesmo é uma habilidade que aprendi para sobreviver à vergonha.

Fui a um casamento pela primeira vez em muitos e muitos anos. Foi o primeiro casamento que realmente achei bonito. Também foi o primeiro em que chorei. Talvez por ser meu primeiro casamento homoafetivo, talvez pela ausência da igreja e de seus discursos binários de gênero, pela forma como a mão do sistema sexo-gênero com seus deveres da mulher e responsabilidades do homem foi completamente barrada da celebração. Pela beleza dos discursos, do afeto, de poder testemunhar algo que nunca tinha visto ou imaginado para mim mesmo. Talvez por ver a empolgação da minha própria mãe, por saber que meu pai também estava ali, que minha irmã também chorava.

Por falar em sistema sexo-gênero, também fui ao posto de saúde. Há muitos meses pensava em quando conseguiria finalmente fazer isso. Enfrentar meu medo de ser visto como promíscuo, de sofrer violência médica mais uma vez, de ser desumanizado por um profissional de quem dependo para os cuidados do meu corpo. Mais uma engrenagem da farmacopornografia. Repassei o que iria dizer várias e várias vezes na minha cabeça, tentando me preparar para superar minha vergonha, para que nada pudesse sair de controle, para não transparecer despreparo, desespero e poder evitar o julgamento.

— Oi, bom dia, gostaria de tomar Prep.

— Olá, bom dia, queria saber como é o processo para poder tomar Prep.

— Oi, gostaria de uma informação, será que você saberia me dizer como posso ter acesso ao Prep?

Eu estava preparado para tudo. Para o olhar carregado, para a complexa burocracia, as perguntas invasivas sobre meus hábitos sexuais, as sugestões de que não precisaria do medicamento e que a camisinha resolveria meus problemas. No entanto, a atendente prontamente me pediu meu documento e meu cartão SUS. Abriu uma ficha e me disse para aguardar um pouco na recepção. Em poucos minutos, um médico me chamou para o acolhimento. Me senti tão a vontade quando percebi em sua voz que estava sendo atendido por outro homem gay. Depois de me fazer algumas perguntas e me passar informações, o simpático doutor me informou que precisaria realizar alguns exames. Fui para a sala de coleta e fui atendido por três enfermeiras empolgadas com o feriado nos próximos dias. A mais extrovertida tinha uma energia contagiante. Após tirar sangue, ela quem me explicou as coletas que faria sozinho: me deu um potinho para urina e outros dois potes acompanhados de varetas com algodão nas pontas, uma com a legenda oral e a outra anal. A moça empolgada me alertou, de forma didática, que tomasse cuidado ao realizar a coleta anal, pois em caso de contaminação eu precisaria fazê-la de novo.

Depois de ficar terrivelmente em dúvida se tinha sido cuidadoso o suficiente e devolver o material da coleta, precisei esperar o resultado dos exames para ser atendido por uma médica. Enquanto esperava, a enfermeira por quem tinha criado muito carinho apareceu com uma caixa gigantesca, de onde foi retirando mais e mais caixas menores cheias de camisinhas. Ela estava reabastecendo a distribuição gratuita do postinho. Eram muitas e muitas caixas com muitas e muitas camisinhas que ela abria e caíam na estrutura de distribuição como doces do filme A Fantástica Fábrica de Chocolate. Lembrei-me de quando era criança e pensava que, pelas cores vibrantes, seus diferentes sabores e por ficarem perto do caixa, os pacotes de camisinha nas farmácias eram como os de doce do supermercado. Reclamando sobre como suas costas doíam de pegar as camisinhas que caíam no chão e como parecia ser um lote infinito, a moça olhou para nós que estávamos esperando e nos perguntou se não gostaríamos de ajudá-la pegando uma caixa. Assim, ganhei uma caixa com cento e quarenta e quatro preservativos. Como não tinha ido sozinho e a pessoa que me acompanhou me deu o pacote dela, acabei com o dobro de unidades. A médica que me atendeu me explicou como funcionaria o medicamento, me fez mais algumas perguntas e me deu uma receita para buscá-lo na farmácia do próprio posto de saúde. Passei na farmácia e, no mesmo dia, já estava com a entricitabina em mãos.

Quando voltei para casa, me sentia sensível. Eu tinha sentido medo dessas pessoas durante tanto tempo e, no final, me atenderam com tanto profissionalismo, tanto carinho e tanto zelo que me senti cuidado como só havia sido por minha própria mãe. Por um breve momento, parei de sentir que o mundo gostaria de me matar e pensei que talvez as estruturas e as pessoas preferiam me ver vivo.

Agora, tenho um medicamento de uso diário para proteção contra a HIV e um total de duzentas e oitenta e oito camisinhas em casa. Sinto que sou o Navio de Teseu. Trinta e três. Trinta e três. Trinta e três. Então, doutor, não é possível passar por tudo mais uma vez?

Coloco Carlos Gardel para tocar.

Com o final da minha graduação cada vez mais próximo e o comeback de todas as meninas do Loona pós disband praticamente confirmados, decidi escrever sobre o evento que moldou toda a minha experiência universitária e que define como me tornei adulto. Em efeito borboleta, falo sobre decisões que tomei anos atrás, durante a pandemia de COVID-19, que me levaram a um isolamento quase completo do mundo. Minha relação com o jornalismo nunca mais foi a mesma, também, sendo manchada pela desconfiança de que há um forte cinismo que envolve o ato de se esconder enquanto enunciador.

Para esse mês também recomendo o texto I Don’t Care About Your Brand. Mais uma vez, Jude Doyle me impressiona com a habilidade de sua escrita tão pungente, tão direto ao cerne. Comentando sobre a entrevista da jornalista de “cultura pop” Taylor Lorenz com uma das maiores figuras na retórica anti trans dos EUA hoje, Chaya Raichik, Doyle denuncia a forma como Lorenz se usa da morte do jovem Nex Benedict, morto após ser severamente agredido no banheiro de sua escola por ser trans, para fazer um culto à celebridade para ela mesma, confrontando uma de suas adversárias e maiores críticas em uma entrevista em pessoa para passar por cima da morte do jovem trans e então falar sobre a disputa entre elas. Doyle abertamente declara que Taylor Lorenz é uma péssima jornalista, que usa o trauma de pessoas trans para seu próprio crescimento, focada em seu prestígio, em seus holofotes, ao invés de respeitar a história de um jovem assassinado. Suas críticas descrevem com clareza minha perspectiva sobre uma das características mais sombrias do jornalismo, o desrespeito com a vida humana, com a narrativa, com a história de vida alheia.

Para fechar o mês, recomendo a entrevista da artista Samia Finnerty para a jornalista Leah Lu. Minha cantora favorita há alguns anos, existe algo sobre a honestidade brutal de Samia e como ela escreve suas músicas que me recorda minha própria forma de pensar. Assim como eu, ela também se apaixonou ao escrever quando jovem devido a figura de uma professora que a motivou a desenvolver uma voz poética. Comentando sobre esse desenvolvimento, ela apresenta meu trecho favorito da entrevista, que decidi traduzir:

“Isso me permitiu sentir a tristeza profundamente, todas as vezes”, ela diz. “Por alguma razão, por mais que eu fosse uma criança cronicamente envergonhada, eu nunca me impedia ou me colocava algum filtro quando eu estava escrevendo… Eu sentia tudo, e [escrever músicas] me permitiu superar as merdas que eu não sinto que possuo a inteligência emocional para processá-las sem escrevê-las”.

Esse texto é a 19° edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”. Você pode assiná-la pelo link: https://filipenarciso.substack.com/

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