Plano de Fuga

Filipe Narciso
3 min readJun 1, 2023

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Gosto de ler o que os outros escrevem. Há um tempo atrás, tive um caso com um rapaz que escrevia longos textos de amor. Longos e longos desabafos sobre seu direito inerente de amar, aquele amor romântico inexorável, impossível. Já fui assim, até mais exagerado, provavelmente. Como não o sou mais, ler o que ele escrevia me fez considerar o que mudou em mim para que, ao invés de me ver empolgado por conhecer alguém romântico, eu me sentisse só um pouco desconfortável.

Já consumi diversos conteúdos de romance entre homens em que o poder do amor vencia todas as adversidades. Para além do clichê, existia um tipo de narrativa desse gênero que me incomoda muito, que é aquela em que dois garotos que se percebem como heteros se apaixonam exclusivamente um pelo outro, sem nunca considerarem outros rapazes como possibilidade.

Nunca fez sentido para mim, porque me apaixonei diversas vezes durante toda minha vida, mas por muito tempo me forcei a acreditar que em algum momento conheceria alguém que misticamente me tiraria qualquer possibilidade de interesse em outra pessoa e com quem as coisas deveriam durar para sempre. Negava meus desejos como impulsos que me afastavam do que realmente almejava, que era exatamente aquele discurso que reencontrei quando li o que o rapaz escrevia.

É como se todos esses processos servissem para a legitimação do sentimento. Mascarar qualquer indício de promiscuidade, de sexualidade, de desejo, seria capaz de construir a promessa de pureza do amor capaz de afastar as chamas do inferno. Ou, então, as chamas do julgamento alheio (ou, quem sabe, o ardor do autojulgamento).

Gosto de homens. Não por uma razão que transcende a minha carne ou que engrandece meu espírito. Eu só gosto. Não consigo imaginar um Universo, uma realidade, em que eu não gostasse. É significativo para mim. Perpassa todas as minhas experiências, decisões, momentos. Não é um fim, mas um componente central.

Sonhei por diversas vezes com uma realidade em que isso pudesse não ser um fator de incômodo social, uma condição divisória, um fator de dissidência. Não tenho mais esse sonho, porque hoje, apesar de todos os desafios, tenho uma série de condições estruturais para me sentir seguro e para ter minha necessidades atendidas. Com esse respaldo, quero reivindicar o espaço questionador da minha identidade queer e também me orgulhar do caminho que percorri para chegar até essa frase.

Depois de me sentir alienado de mim mesmo em toda minha vida pelas narrativas que consumi, gostaria de me apoiar numa vivência diferente, numa experiência de mundo próxima de como realmente me sinto. E que essa experiência possa ir além de um sentimento higienizado, polido, asséptico. Que possa ser raivoso, contraditório, visceral, até sujo se for o caso, mas que seja um sentimento legítimo.

Para esse mês, recomendo o artigo A transformação do silêncio em linguagem e ação da escritora negra, feminista radical e lésbica Audre Lorde. A proposta desse artigo é da mesma essência da proposta da minha Newsletter. Lorde explicita diversos pensamentos que também já perpassaram minha cabeça e tê-la como referência me motiva a seguir adiante, pois posso reconhecer aqueles como eu que vieram antes de mim e me apoiar em suas forças e em suas palavras.

Com o aniversário de 20 anos de um de meus jogos de terror favoritos nesse mês, recomendo o vídeo-ensaio Silent Hill 3: Exploring Womanhood through Horror da criadora de conteúdo do YouTube Tango/TangoMushi. O terceiro jogo da saga Silent Hill sempre foi um dos jogos de terror que mais conseguiu me abalar com sua construção de cenários e com sua trilha sonora e, além disso, sempre senti um elemento especialmente desconcertante de realismo em jogar com a protagonista do jogo, uma adolescente rodeada por monstros até mesmo em locais que são supostamente seguros.

E, por fim, recomendo a produção de alguém que estou devendo um espaço no meu projeto há um bom tempo. A linguista Jana Viscardi é uma das minhas criadoras de conteúdo favorita da internet e possuo enorme admiração por seu trabalho e sua área de atuação. Em virtude de uma conversa que tive esse mês sobre esse mesmo assunto, decidi por recomendar seu vídeo Palavras racistas, etimologia e violência simbólica em que ela esclarece, para pessoas em geral bem intencionadas, o que realmente é importante levar em consideração quanto a relação estabelecida entre linguagem e racismo.

Esse texto é a nona edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”, pela qual você pode assinar através do link: https://tinyletter.com/FilipeNarciso

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