Para o Norte
Estive pensando em coisas proibidas. Coisas que me proibi de pensar, me proíbo de considerar, não posso e não devo. Questionando coisas já resolvidas, pensando em responder meu ex, complicando minha relação com gênero, dificultando minhas amizades, revisitando minha sexualidade com menos eufemismos e dissimulação.
Você me diz que eu sou especial. Não somos todos? Não sei se me sinto especial.
Será que eu tenho a maturidade, principalmente emocional, pra falar sobre isso? As palavras travam a minha garganta, duras demais para serem expelidas. Sinto que é a primeira vez que eu escreveria coisas que não devem ser lidas. Ou melhor, que não gostaria que fossem.
O que minha sexualidade significa pra mim? Tudo, de certa forma. Ela foi minha primeira grande diferenciação, o primeiro verdadeiro significante a que fui submetido, a que me impuseram tão recém chegado a vida. Minha sexualidade sempre foi bastante extirpada da ideia de sexo, no entanto. Um certo projeto político do século XXI parece buscar construir uma identidade gay que seja higienizada, que seja menos desviante, que seja homossexual, esse termo tão patológico, tão cientificista. Esvaziada de tesão, de kink, de sexo, de paixão. A condição gay como um inevitável que poderia, ainda, ser controlado, ser menos desagradável, ser quieto, ser diminuto.
Enquanto na adolescência todos falavam de sexo com certa normalidade, pois o sexo para os rapazes héteros era sempre um sinal de poder, eu me abstinha. Ainda é estranha a experiência de assumir que tenho perspectivas pouco ortodoxas, pouco cisheteronormativas sobre o que é sexo para mim. Sobre como o mais divertido seria inverter o jogo de poder inerente, ver o homem indefeso, a súplica. Explicar para quem se importa que o temor da soropositividade não supera, não extermina o desejo carnal. Andam lado a lado, se intensificando e se enfraquecendo, as consequências do desejo proibido, o desejo pelo cândido alimento. Nenhuma coincidência em gozo, regozijo.
Talvez tudo isso seja amor. Estive pensando muito em amor, apesar de tudo. Relembrando algumas das histórias mais bonitas que carrego comigo.
Eu perdi meu ônibus para Belo Horizonte duas vezes. Uma em 2020 e outra em 2023. Da primeira vez, decidi de última hora que não iria estudar na capital mineira. Eu já tinha imaginado minha vida na cidade que não conhecia. Tínhamos até imaginado um futuro próximo para nós dois. Subestimei o quão grande o estado de Minas Gerais poderia ser. Pensei que, eu morando em Belo Horizonte e você em Montes Claros, poderíamos nos ver com frequência. Mesmo depois de descobrir que seriam 5 horas de viagem nos separando, eu estava pronto para cruzar tudo isso com frequência para te ver. Hoje em dia, moramos na mesma cidade e ainda assim nos vemos uma vez por mês, com sorte. E mesmo sendo tão pouco frequentes, são os dias mais divertidos da minha vida. Sua presença sempre torna tudo mais feliz, mais despretensioso.
Fui para sul, para a cidade de São Paulo. Eu morava perto do litoral norte do estado. Fiz e continuo fazendo esse movimento latitudinal que vai e vem e vai e vem. Em minha cidade dividida em duas pela rodovia Presidente Dutra, eu via os carros implacáveis, infinitos. Você também tinha sua locomoção característica, da cidade satélite para a metrópole, todo começo e fim de dia. Nós dois nos encontramos numa cidade estranha um para o outro. Você sentia mais falta de onde veio do que eu, mesmo vivendo mais experiências. Acho que você tinha mais sustentação aonde veio, eu nunca senti que tive um lugar no interior.
Era engraçado. Quando estávamos juntos, você era tão mais alto do que eu que eu precisava ficar na ponta dos meus pés para chegar até seu rosto. Uma vez, usamos a diferença de altura entre a calçada e a rua para ficarmos mais perto e, ainda assim, eu precisava esticar meu pescoço para te beijar. Meu orgulho foi gravemente ferido quando percebi o quanto eu gostava de você, porque sempre havia dito que altura era algo superestimado. Um dia, eu te mandei uma mensagem longa e emocionada sobre como você era minha pessoa favorita que havia conhecido naquele ano. Poucos dias depois, te disse que gostava muito de você, ao que você prontamente me respondeu que não se sentia preparado para nada. Não fiquei decepcionado, talvez um pouco triste, mas te amei um pouco mais pela sinceridade.
Eu sentia medo constantemente. Queria tanto que as coisas dessem certo que tudo parecia tão errado, não conseguia dar risada dos meus deslizes ou me perdoar pelas coisas que dizia ou que evitava dizer. Não sabia como me sentir, a ideia de que você não sentiu ciúmes ou qualquer emoção forte me deixou desconcertado. Mas isso não é verdade, não é? Você me disse que havia chorado. Eu só fui egoísta, eu queria outra reação, outra resposta. Tive que tentar impedir de me machucar ainda mais, e então nunca mais nos falamos.
Eu queria amar você do jeito certo. Queria que você me dissesse exatamente como você gostaria que eu fosse e eu daria meu melhor para ser desse jeito. Me deitaria ao seu lado, vulnerável, desarmado, entregue. Queria conseguir colocar em palavras como amo todas as coisas que você fala. Que amo saber sobre sua infância, quem você era, os caminhos que te trouxeram até aqui. Amo suas decisões estéticas, seus gostos, sua forma de se expressar. Queria dificultar nossa amizade só pra me sentir desejado por você por um momento que seja. Poder te olhar nos seus olhos e sentir que você me quer por inteiro, mesmo que seja só enquanto você estivesse sob esse encanto. Fazer você me ver como te vejo. Queria ser inspiração para uma das tantas coisas bonitas que você faz. Que você pudesse me ver com a mesma bondade que sei que vê as outras pessoas. Queria conseguir me ver com a mesma ternura que sinto que você tem pelos outros. Queria poder fazer você feliz, mesmo que só um pouco. Que quando eu morresse, e nada mais sobrasse de mim a não ser meu ínfimo legado na terra, você tivesse memórias bonitas sobre mim. Coisas que você guarda com você e mais uma ou duas pessoas de confiança, se abstém de compartilhar com o mundo. Queria te contar que torço secretamente que você perceba que eu sou o que você quer, que tanto procura. Mas que, apesar de querer te devorar vivo, fico feliz em poder ter esses pequenos pedaços de você pra mim, memórias da sua voz, seu sorriso, suas inseguranças, seu coração brilhante. Não sou a pessoa certa pra você, nem nunca vou ser. Primeiro que não acredito que isso exista, mas principalmente não sinto que te ofereço o que você precisa ou ao menos quer. Mas amo você, amo saber sobre você, amo te conhecer, amo ver o tempo passar ao seu lado, amo relembrar você nas pequenas coisas, amo como me sinto sobre você.
O amor infinito sempre dá sua forma de chegar até mim. Perdi meu ônibus novamente em 2023 e estraguei todo meu fim de semana. Tive que cancelar todos os meus planos, fui xingado e acabamos nos afastando lentamente depois disso. Eu sabia que isso iria acontecer, eu o avisei. Acho que você também ficou decepcionado comigo. Eu ficaria no seu lugar. Mas você era tanto. Sinto sua falta com frequência. Penso nas impossibilidades que me afastaram de você, apesar de todo sentimento e desejo.
Fui para casa naquele dia, fechei todas as janelas, andei pelo escuro até a cama, deitei e chorei até ficar exausto. Você chegou calmamente, abriu a porta e deixou um pouco de luz entrar.