Palavras de Narciso

Filipe Narciso
8 min readSep 30, 2024

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Mais de dois anos depois, esse mês considerei pela primeira vez mudar o nome da minha newsletter.

Por acaso das leituras que fiz para minha monografia, acabei pensando mais que o normal sobre as interpretações e possibilidades não só do mito de Narciso, mas da multiplicidade semântica de ser um narcisista. Estaria eu sempre falando de mim em todas as edições da minha newsletter? Acho que sim. Estariam todas as pessoas sempre falando de si mesmas? Talvez. Se a resposta dessa pergunta for negativa, então quem não fala sobre si, fala sobre quem? Nesse processo, intencionalmente ou não, essas pessoas continuam sendo quem diz, escondidas detrás de mea culpa. Quem se dissimula realmente deve ser confiado? Mais ainda, se a resposta daquela pergunta for positiva, quem é reconhecido quando fala sobre si? Acho que sou, então devo ser narcisista.

Apesar do equívoco bastante comum de que Narciso se trata de um segundo nome, é o sobrenome que herdei de meu pai, a pessoa mais perfeccionista que conheço. Meu pai é um faz-tudo, entusiasta da noção de autonomia, algo que compartilha comigo com frequência. Ele sempre quer que eu esteja preparado, sempre me recomenda o que eu poderia fazer para viver melhor, para ser mais saudável, para aprender mais. Artes marciais, corrida, direção, concursos públicos. Apesar de enfatizar com frequência que se orgulha de mim, e não poupar demonstrações de carinho, eu sempre poderia ser melhor.

E acredito nele, também acho que eu poderia ser melhor. Como escritor, acredito que sou um ótimo corretor de textos. Sou bastante detalhista e gosto de crítica, gosto de aprimorar as coisas, gosto de reconhecer suas qualidades e ver potencial de melhoria (ou não). Sinto que estou a vontade quando faço o trabalho mental de visualizar algo diferente em um texto. Também não tenho medo de verbalizar minhas opiniões, porque me sinto confiante no que sei.

Dito isso, sou pouco criativo. Não me considero um bom criador de nada. Sou mais, quando inspirado, um bom imitador. Por isso, sempre gosto de esclarecer minhas referências, gosto de fazer um ode ao que admiro e ao que me traz motivação. Sempre me dei melhor com língua, sintaxe, do que com lógica. Pra mim, a sintaxe é muito clara, se tratando apenas de uma série de regras. Para ser bom com lógica, você precisa lidar bem com abstração. Parece que já houve um tempo em que meus pensamentos eram novos para mim, em que eu sentia que estava em constante descoberta. Hoje, sinto que escrevo e digo coisas que penso o tempo todo, obviedades, repetições cansadas do mesmo assunto. E que, até mesmo dentre as coisas que não repito nem para mim mesmo, não consigo fazer jus à sua relevância.

Uma das únicas vezes em que vi meu pai chorar foi lendo um livro. Eu tinha 12, 13 anos e precisava ler “O meu pé de laranja lima” de José Mauro de Vasconcelos para a escola. Quando contei isso para meu pai, ele sugeriu que lêssemos juntos, só me avisou que era um livro muito triste.

Quando ele chegava do trabalho, ou depois do jantar, nos sentávamos no quarto dele e eu lia para ele e para mim a história de Zezé, criança cheia de traquinagens e diversão, fustigado pela pobreza e pela violência do mundo dos adultos. Zezé sofria, e sofria muito, apesar de seu brilho infantil, de seu deslumbramento característico da infância. A pobreza e a violência não o permitiriam uma infância por muito tempo. Eventualmente, Zezé fica doente, a verdade o adoece, e ele muda. Abandona a fantasia.

Meu pai nunca terminou o livro comigo. Quando estávamos mais ou menos na metade, e eu lia alto um trecho particularmente triste, ouvi um barulho soluçado e, ao levantar a cabeça, vi que ele estava com a mão em frente aos olhos. Sem saber o que fazer, pois nunca tinha visto meu pai assim, continuei lendo até a passagem acabar, ao que ele permaneceu escondendo os olhos. Quando terminei, ele já de olhos vermelhos, me disse que o livro era muito triste e me sugeriu terminar de ler sozinho, ao que concordei. Tanto ele quanto eu não sabíamos como lidar com essa emoção. Também chorei com o livro, depois, sem ele ver.

Revisitando a obra para escrever essa edição, percebi que nas notas sobre o autor há uma fala de José Mauro que gostaria de compartilhar:

O que atrai meu público deve ser a minha simplicidade, o que eu acho que seja simplicidade. Os meus personagens falam linguagem regional. O povo é simples como eu. Como já disse, não tenho nada de aparência de escritor. É a minha personalidade que está se expressando na literatura, o meu próprio eu

Era isso. A história de Zezé, em muito, é a história de meu pai. E a forma como ele é meu pai carrega o amadurecimento precoce, a violência da pobreza, da insegurança alimentar, dos simples desejos não cumpridos. Meu pai sempre deseja me preparar. Me preparar para que eu não viva a mesma violência desamparado. Ele sempre me diz que espera ser um pai melhor que seu próprio pai o foi, mas que não tem certeza se o é.

Meu pai me disse incontáveis vezes que algo que me aborrecia ou entristecia não era um problema real. Ele, então, me oferecia uma lista do que eram problemas reais: questões de saúde, pobreza extrema, acidentes, guerras. A cada vez que isso acontecia, eu me tornei mais apático a seu apoio, ao ponto que deixei de o contar meus problemas. Eu sabia que para ele minha tristeza nunca seria válida. Conforme fui ficando mais velho, eu o entendi. Os problemas reais estavam no passado, na infância, período em que somos incapazes de nos proteger.

Diferentemente de meu pai, um livro que me desalinhou foi “A hora da estrela” de Clarice Lispector. Já mais velho, com meus 17 anos, tive dificuldades em entender, no começo, a história de Macabéa pela visão de Rodrigo S.M. Não compreendia sua crueldade, seus comentários tão humilhantes, a forma como a diminuía e fazia questão de a criticar constantemente. Mas, ao final, chorei, chorei tanto com Macabéa. Tudo mudou quando percebi que eu me via assim. O narrador, a voz interior, a humilhação. Aquele era eu, quando adolescente. No trecho em que, tendo seu encontro, Macabéa se urina de vergonha e finge que nada aconteceu, eu entendi. Sem apresentar nem o instinto básico de autopreservação, tímida demais, inútil demais para se limpar. Eu era Rodrigo S.M para cada falha, cada erro de julgamento, cada vergonha, cada culpa que eu sentisse. Aquele era meu narrador, falando sobre mim, sobre algo coitado, despreparado, incapaz.

Por isso o final me desabou. Diferentemente de uma manifestação da realidade, o atropelamento de Macabéa adentra a narrativa como uma intervenção do narrador. Quando nossa protagonista é prometida felicidade pela primeira vez, parece que Rodrigo S.M ele próprio é incapaz de a imaginar nessa situação, ao que ele precisa agir para garantir que ela será condenada ao sofrimento, de que ele mesmo precisa mostrar pra ela que a felicidade não existe. Macabéa é um bode expiatório a quem todo sofrimento é justificado por sua ingenuidade, por sua permissividade, por sua timidez, por sua inação. Macabéa não pode ser feliz. Macabéa é feia, é idiota, é uma inútil. Ela não merece.

Lendo “A hora da estrela”, me odiei e tive pena de mim mesmo como nunca antes. Eu me odiava por ser Macabéa, mas também me odiava por ser Rodrigo S.M. Sequer poderia ser inútil em paz, pois eu sempre teria essa voz em mim para me agredir a cada decisão que eu tomasse. A cada vez que eu era diferente dos outros meninos, a cada vez que eu não conseguia ser um bom filho, a cada vez que eu era tímido demais, a cada vez que a violência me deixava paralisado e eu não me defendia, a cada vez que eu não conseguia ser algo diferente. Aquele era eu e aquele carro estava vindo pra cima de mim.

Por isso, eu me pergunto, seria homoafetivo, seria homoerótico, seria queer se apaixonar por um reflexo fisionômico de si? Seria narcisista querer sempre ser uma versão melhor de si? E chorar porque, apesar de todos os esforços, nunca é capaz de se tornar o que gostaria de ser? Por que é impossível atingir a imagem refletida? Quando meu pai diz que deseja ser um pai melhor que seu próprio pai o foi, será que ele o faz só para se castigar, lembrando da própria infância? Nunca o pedi que ele fosse melhor que meu avô, até porque nunca o conheci.

Acho que meu pai também tem um Rodrigo S.M dentro dele. Nós compartilhamos esse mesmo carrasco.

Quanto à mudança de nome, não sei, talvez não faça nada sobre isso. Considerações sobre branding me fazem pensar que talvez não seja a melhor ideia, mas não é como se eu estivesse tentando criar uma marca™. Gosto tanto da palavra dissidente. Só que, talvez pra além de dissidente, eu seja um Narciso: reflexo de si, flor venenosa, fábula sobre a condenação que virá por pensar demais em si mesmo. O que você acha? Gostaria de saber. Por agora, essa segue sendo a vigésima quinta edição de “Palavras de Dissidente”.

Como primeira recomendação de leitura esse mês, trago um texto escrito por Lenio Streck para a plataforma Conjur sobre o processo das cientistas Ana Bonassa e Laura Marise, condenadas por combater a informação falsa de que o diabetes é causado por vermes. Além do texto completo de Lenio ser muito bem executado, gostaria de enfatizar seu posicionamento em relação a ideia de danos morais e como a humilhação/correção é uma ferramenta coercitiva importante para a superação de costumes morais da civilização. Streck deixa bastante claro seu posicionamento de que a desinformação deve ser combatida com a humilhação pública, com a exposição do agente desinformante, com o combate ativo das fake news, conceito de que compartilho e que faz parte de minha defesa do direito inerente à crítica.

Também recomendo para esse mês o vídeo-ensaio “The Pewdiepipeline: how racist humor leads to violence” que trata da relação direta entre a popularização de conteúdos humorísticos de violência contra minorias e como eles potencializam e mobilizam que atos de terrorismo e violência contra minorias sociais sejam cometidos. Com a representação da violência como uma pirâmide com 5 diferentes etapas de cima para baixo, de crenças/preconceitos à genocídio, a verbalização e “normalização” do politicamente incorreto como válido, mesmo enquanto humor, dá a validação para neonazistas e outros preconceituosos para partir a agressões físicas e outras formas de terrorismo. Apesar de geralmente não ser muito boa, a tradução automática da legenda me parece bastante respeitável, pois o youtuber forneceu uma legenda não-automática em inglês base que pode ser traduzida para o português, por isso posso até recomendar o vídeo para quem não é fluente em inglês.

Minha última recomendação é um jogo. Praticamente um filme, uma experiência visual, Mouthwashing é um jogo de terror em primeira pessoa que se passa no espaço, onde acompanhamos a tripulação de um navio cargueiro que atinge um asteroide. Não quero oferecer mais detalhes porque considero importante experimentá-lo em primeira pessoa, nem que seja assistindo outra pessoa jogar, mas ao menos ver em primeira mão o desenrolar de sua história. Vou pensar por muitos dias ainda no que essa experiência trouxe pra mim.

Recomendações

De como ser negacionista dá prêmio por Lenio Luiz Streck

Uma sombra atravessa a porta por Filipe Narciso

The Pewdiepipeline: how racist humor leads to violence por NonCompete

Mouthwashing por Wrong Organ, distribuído por CRITICAL REFLEX

Esse texto é a 25° edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”. Você pode assiná-la pelo link: https://filipenarciso.substack.com/

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