O último a sair, favor trancar a porta

Filipe Narciso
4 min readJun 30, 2023

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Mais uma vez, me sento à escrivaninha para escrever. Parece que isso é tudo que fiz esse mês. Escrever e dormir, dormir e escrever, sonhar com o que escrevo, escrever sobre meus sonhos. Passo os dedos suavemente pelo teclado, esperando alguma coisa acontecer. Uma ignição, um despertar, um movimento brusco.

Que não vem.

Deito na cama. “Acho que perdi a capacidade de pensar”, penso. Olho para o teto feito de um material que me lembra plástico, como aqueles de que portas sanfonadas são feitas. Lembro de uma época em que fiquei semanas me convencendo de que haviam fungos crescendo em minhas paredes. Lentamente, dia após dia, aumentando sua colônia em decorrência de uma infiltração ou uma fonte de umidade desconhecida por mim. A longo prazo, dormir nesse ambiente me traria fortes complicações no sistema respiratório e seria a razão de uma morte precoce enquanto jovem não-tão-jovem.

Abro o bloco de notas do celular para tentar colocar em palavras meu cansaço, que não é absoluto, mas persistente, recorrente. Me sinto apenas a sombra de quem eu poderia ser. Sinto meu peito lentamente me sufocando, mas não me sinto triste. Num movimento conformado e calmo, minha caixa torácica pressiona meus órgãos internos para bem, bem fundo do meu corpo, até que eu não sinta mais que eles estão ali.

“Ao menos ainda sinto minha mandíbula”. Não sei se vou poder dizer o mesmo mês que vem, depois de tirar meus dentes do siso. Na experiência de ser adulto, todas as coisas acontecem simultaneamente. Escrever esse texto é ignorar as oito páginas sobre teoria literária que preciso escrever para a próxima quinta.

Enquanto encho o carrinho do supermercado de açúcares e ultraprocessados, me pergunto se meu hábito de beber 4 litros ou mais de água por dia pode compensar uma alimentação tão questionável. Me pergunto, também, se os funcionários do atacado já repararam no rapaz que vem aqui uma vez por mês comprar até 20 porcarias para poder usar o caixa rápido.

Mas a questão é que não sou tão especial assim. Acho que, na capital paulista, ninguém o é. Talvez eles já tenham reparado, comentado e dado uma risada ou outra de mim, assim como de outros clientes engraçados e seus hábitos desequilibrados.

Não sou uma pessoa iluminada pelo dom das palavras que está com um bloqueio criativo, só estou cansado. Muito cansado. Talvez eu escreva coisas desinteressantes ou caóticas ou pouco/nada inspiradoras. Ainda mais em momentos em que mal consigo lidar com minhas obrigações, em que sinto o mundo girando rápido demais para que eu possa o acompanhar. O show não precisa continuar.

Minha primeira recomendação para essa edição vem de uma das minhas grandes inspirações para esse projeto, Jude Doyle. Foi com um texto de Doyle recomendado na segunda edição, que me levou às lágrimas e ainda consegue e provavelmente sempre conseguirá me fazer chorar, que passei a considerar a ideia de ter uma newsletter própria. Dessa vez, recomendo It’s Still Good to Be Queer. do Jude, que trata sobre a experiência do mês do orgulho em um ano tão marcado por um debate transfóbico e queerfóbico em geral no Ocidente.

O segundo texto que recomendo é sobre a mais nova série da HBO, The Idol, e seu enorme fracasso na sua proposta de ser sexual. Para a GQ Magazine, Lucy Ford explicita como os devaneios sexuais masculinos, em especial heterossexuais nesse caso, são, de certa forma, tão desconectados da experiência de sexo que, ao serem representados na série em uma forma tão pura, fazem parecer com que ninguém envolvido em sua produção sequer tenha feito sexo em algum momento de suas vidas.

Minha terceira recomendação é o vídeo I was a transgender child. de Alexander Avila. Um depoimento poderoso sobre sua experiência de ser uma criança queer, Avila expõe todas as transformações em sua vida, desde sua questão de identidade até ter um canal consideravelmente conhecido na plataforma YouTube. Elucidativo e poderoso em momentos tão complexos para a validação e compreensão da noção de infância queer.

Para fechar essa edição, recomendo a reportagem denúncia Pacto de Mediocridade: a guerra subterrânea dos trabalhadores da Livraria Cultura publicada na plataforma Passa Palavra. O formato descontraído da entrevista e do relato, apesar do tema desconcertante sobre ambiente de trabalho abusivo, me entreteve e me deu motivação para continuar lutando ao longo do mês, nem que seja pelo caminho da mediocridade.

Esse texto é a décima edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”, pela qual você pode assinar através do link: https://tinyletter.com/FilipeNarciso

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