Norwegian Wood e aquilo que foge à descrição

Filipe Narciso
3 min readFeb 23, 2021

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Ilustração própria. Livro por Alfaguara Editora / Companhia das Letras.

Mas então deve ser muito perigoso — concluí. — Um poço profundo, mas que ninguém sabe onde fica. Se alguém cair lá dentro é o fim de tudo.

Ao escutar uma canção dos Beatles durante uma viagem de avião, Toru Watanabe recorda episódios de sua juventude. Em Tóquio, no fim dos anos 60, o jovem Toru se apaixona por Naoko, namorada de seu único melhor amigo Kizuki que, aos 17 anos, tirou a própria vida. Simples estudante de teatro, Toru desenvolve uma paixão assídua e devota a Naoko. Entre a universidade, o dormitório para garotos e a loja de discos em que trabalha, seus sentimentos pela jovem ainda em estado mental delicado florescem e invadem sua rotina.

Norwegian Wood, título homônimo tanto da canção da banda britânica quanto da obra do escritor japonês contemporâneo Haruki Murakami, é um romance sobre amadurecimento e morte. Construído com altas doses de introspecção, os eventos são submersos em uma espécie de apatia contemplativa. Esse estilo reservado não diminui o valor da obra enquanto entretenimento, sendo condição inexorável para sua excelência sedutora — mas também para alguns de seus principais defeitos.

Ainda que o silêncio seja a característica mais expressiva da obra, temas como sexo e sexualidade são tópicos abordados com frequência. Eles são inseridos sob diferentes óticas similares às diferentes definições que lhes são atribuídos no cotidiano, seja como vínculo, jogo de poder, intimidade ou até mesmo invasão. Em episódios recorrentes, isso leva o romance a decisões narrativas potencialmente controversas ao abordar a voracidade predatória de algumas relações humanas. Morte, luto e abuso misturam-se tanto em uma complexa e admirável teia de representações simbólicas e conotativas quanto em manifestações diretas, muitas vezes indelicadas e repulsivas.

Em outra perspectiva, uma das decisões mais veneráveis em relação a Norwegian Wood residem na sua relação com o suicídio. Ao invés de atender à curiosidade humana sobre os motivos da decisão, é com grande sensibilidade que Murakami escolhe não dar respostas. Como fenômeno multifatorial, atrelar o suicídio a uma razão específica seria reduzi-lo a noções simplistas e um consequente desserviço. Na obra, as personagens agem de acordo com seus próprios preceitos e contextos, dos quais tanto Toru quanto provavelmente eles mesmos têm pouca ciência. Desse estado mental confuso se origina a relação causa e consequência estabelecida pela ignorância e a indiferença e sua responsabilidade por cicatrizes profundas na sociedade contemporânea.

Assim, a evasão ao âmago da questão é intrinsecamente relacionada às personalidades frágeis, descompostas e cativantes das personagens. E é com espanto que se observa sucessivas vezes eles manterem segredos sobre seu atual estado emocional em situações de dificuldade. Naoko é a personagem que mais claramente incorpora esse aspecto. Ao reafirmar sua dificuldade em se expressar e escolher as “palavras certas”, a jovem se afunda continuamente em complexas questões interiores e deteriora progressivamente (ainda que de forma descontínua) suas faculdades mentais. No espaço em que o silêncio predomina, a aproximação e a intimidade deixam de existir.

Por essa razão, Norwegian Wood é um livro misteriosamente hipnotizante que é capaz de envolver o leitor em uma calmaria autocentrada. O estilo de escrita de Murakami faz da visitação de Toru ao espaço bem preservado de seu passado ser implacavelmente atraente. Murakami articula com maestria um microcosmo único para seu romance de amadurecimento. Suas personagens, entretanto, intercalam o humano e o genérico com frequência. Seja por moralidades dúbias ou aspectos excêntricos, existe um projeto de profundidade emocional que é planificado pela relação estabelecida entre as personagens femininas e masculinas e sua perceptível tendência à objetificação de mulheres. Em especial, as relações entre Toru e seus interesses românticos do livro são desencaixadas e difíceis de digerir.

Traumas e ausência de respostas marcam o desenvolvimento de Toru e daqueles que lhe são relevantes nesse momento de sua vida, a qual mesmo após 18 anos ele retorna ao ser tragado por suas memórias. Um mantra repetido frequentemente pelo protagonista é o de que a morte é parte intrínseca à vida, e não oposto a ela. Murakami, por sua vez, posiciona a morte e a transformação no epicentro do seu romance. Mas também o submete a oposições em sua qualidade, atribuindo-lhe enorme poder de atração desde as primeiras páginas em desequilíbrio com a imersão em polêmicas e generalizações vulgares.

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