Ninguém está olhando.

Filipe Narciso
3 min readJun 26, 2024

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Ilustração própria. Foto por spekulator/FreeImages.

Em completo silêncio, sem avisar a ninguém, arruma suas coisas e sai de casa. Como são bons minutos de caminhada, decide ir de bicicleta. O caminho pela avenida é sempre mais rápido, mas com o dia todo livre para si, decide usar as pequenas ruas auxiliares para evitar os carros e as pessoas. Desliza pelo vento, sente as pernas dormentes, o sol dificulta sua visão. Falta pouco agora.

Depois dos prédios e longe dos estabelecimentos, há uma cerca. Uma cerca enferrujada, distorcida, mal cuidada, desimportante, esquecida. Essa cerca causou uma dúvida, que se tornou uma visão, que criou um respingo de curiosidade que cresceu e cresceu e cresceu infinitamente. Com pouco esforço, conseguiu se esgueirar pelas brechas e a atravessar, junto de suas coisas. Do outro lado, poucos metros adentro de uma vegetação fechada, um pequeno corpo d’água, recluso, que mais ninguém conhece. Quando chega, olha bem ao redor, só para ter certeza.

Se despe, sem pressa. Das primeiras vezes, só molhou os pés, com medo de estarem observando. Dessa vez, não sente receio em ver toda sua pele no reflexo da água. Sabe que ninguém vê, exceto a imagem refletida.

Ao primeiro toque, a água é fria. Ela assusta, afasta. Mas resistindo-se um pouquinho, entram o pé esquerdo e depois o direito, afundam-se as pernas, a água bate no peitoral e o mamilo enrijece. Ainda está frio, mas se acostuma. Os dentes param de bater, a necessidade de fugir se enfraquece, o ser está imerso demais para desistir agora.

Uma sensação de redescoberta do próprio corpo se projeta como uma onda. O frio se torna ameno que se torna conforto. Não sente necessidade de fazer mais nada, só quer sentir a água. A cada submersão parece descobrir uma nova sensação. Hoje, percebe como seus ombros estão tensos e tenta os relaxar, pouco a pouco. Talvez aquele seja seu poço dos desejos. Desejo, coisa tão fugidia, água que desliza ao ser tocada.

Sabe das histórias daqueles que morreram afogados, as conhece desde criança. Todos os alertas, todos os sermões, todos os esforços para que resistisse aos desvios sempre estiveram lá. Sente a ponta dos dedos murcharem, como se estivesse definhando. Pouco a pouco, seu corpo irá se tornar apenas carne desidratada, um grande bloco de sais minerais compactado. É uma ideia reconfortante. Sente o tempo passar, o definhamento se apressar, as rugas se intensificarem, o entardecer chegar.

Logo precisa ir, vão perceber sua ausência se não estiver em casa antes de escurecer. A água continua infinitamente imóvel, não importa o quanto respire, inafetada por sua presença. Caso se mova bruscamente, tudo ainda retornará a como estava antes. Mas não quer retornar, não agora. Seja imprudência ou rebeldia, não sabe dizer, mas sabe que sabe nadar, sabe que não há ondas, então que mal faz?

Mergulha toda a cabeça.

De olhos fechados, tudo desaparece e adquire novo sentido. De olhos fechados, todos seus sentidos se tornam um só: sente o cheiro úmido e vivo da água, seu sabor indescritível enche sua boca, a sente por toda pele, em todo lugar, a ouve, distante, próxima, por toda parte, a enxerga através das pálpebras. Tudo vira água. Sente como se fosse parte, estivesse por toda parte.

Nunca pôde dançar, nunca pôde sentir o vento, nunca pôde molhar o cabelo. Agora, com a cabeça debaixo d’água, sente o impulso de abrir os olhos, mas resiste. Através das pálpebras, vê a luz refratar lá em cima e deixar de iluminar antes mesmo de atingir o fundo. Está ficando tarde, mais tarde do que todas as outras vezes, mas só quer sentir a água um pouco mais.

Não sabe até quando irá aguentar. Sente a garganta fechar, o turbilhão invadir sua cabeça, se sente cada vez mais leve. Precisa sair. Se não sair agora, não poderá sair nunca mais. Mas a água empurra gentilmente seu corpo para baixo e o envolve de forma tão aconchegante. Agora, não há mais luz. Só há água, para toda a parte.

Decide ficar, só mais um pouco.

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