Narciso
Sou os fungos morando em minhas paredes.
Sou uma coletânea de cicatrizes, machucados, úlceras e urticárias.
Sou a criança que, tentando descobrir o mundo, sempre se machuca.
Sou a garota final de um filme slasher.
Uma risada em um funeral, desejo de morte, pelos que se eriçam.
Sou a ideia que corrompe, que te devora vivo, os primeiros vermes que roerem sua carne.
Sou a princesa que não quer ser salva, mas que se isola em sua torre, esperando alguma coisa.
Sou sede de vingança, clamor por justiça.
Sou a dor de nascer, um choro de vida, o bebê arlequim.
Sou o monstro que aprendeu a linguagem dos humanos, os talheres da civilidade ocidental, o menino lobo.
Sou o primeiro a chegar e o último a ir, o último a chegar e o primeiro a ir.
O vulto no canto dos olhos, um retrato envelhecido, Saturno devorando seus filhos, o rapto da inocência.
Pupilo de Augusto dos Anjos, filho do carbono e do amoníaco, restos mortais da carne.
Sou o hieróglifo na parede, um símbolo sem significado, uma espiral infinita.
Sou fruto do conhecimento proibido que liberta, o fim de uma jornada, a morte de um mártir.
Sou o fim da tentativa de conciliação, nunca uma assimilação, sempre um assemblage.
Em um mundo dividido em dois tipos de pessoas, aquelas que sentiram a dor e aquelas que ainda vão sentir, eu estou esperando a minha hora.
Não criei nada, não crio nada e nunca criarei nada. Tudo que faço tem referência em algo ou alguém anterior a mim.
Li uma interpretação certa vez do mito de Narciso. Nunca fui capaz de encontrar sua fonte original. Nela, um oráculo fazia uma previsão ao jovem, um alerta: você viverá apenas até o dia em que se conhecer.