Narcisismo como dissidência política
Há apenas dois meses atrás, na minha newsletter do mês de abril, escrevi sobre minha relação com a homofobia explícita. Contei que dois desconhecidos tentaram me intimidar com xingamentos homofóbicos nas ruas. Naquele texto, admiti que sinto medo, mas que meu medo não se sobrepõe à vontade de existir enquanto pessoa queer e não se sobrepõe ao meu desejo de liberdade. No começo desse mês, logo após o dia dos namorados, fui acometido pela triste notícia do assassinato homofóbico de Leonardo, emboscado por um falso encontro marcado pelo aplicativo Hornet, utilizado por homens gays para sexo.
Não o conhecia e admito ser assustador a possibilidade de isso ser visto como um pretexto para me divulgar a partir de sua história, mas não posso simplesmente a ignorar. Desde a notícia de seu falecimento, fui bombardeado por discursos dos mais bizarros. Discursos higienistas, discursos de culpabilização da vítima, discursos que negam a homofobia como fundamental nesse caso. Muitos desses, de outros homens gays. Uma das maiores vitórias do capitalismo tardio, do modelo de vida hoje, é a desarticulação política de minorias por meio da concessão de direitos menores, pela sua assimilação no que é o cisheteropatriarcado ocidental. Quando um indivíduo, ou um grupo de pessoas, decide caçar homens gays em aplicativos direcionados para a própria comunidade, não é simplesmente uma questão de oportunidade, mas sim de abuso de poder, de uma violência simbólica enorme contra uma comunidade marginalizada. Se a segurança pública é um problema universal, não atingindo especificamente uma minoria social ou um sujeito metafórico, essa é uma violência direcionada, programada. Mais ainda do que a atitude dos criminosos, a permissividade desses aplicativos assomadas à indiferença de agentes de segurança pública demonstram como nossas vidas valem menos.
Pessoas queer em geral, nesse caso em especial homens gays, sempre se viram obrigados à criar formas particulares de cultivar relacionamentos e produzir laços. Construímos nossos espaços, desfrutamos de nossos confortos enquanto membros de uma mesma alteridade. Assim como eu, pelo que testemunhei nas publicações de seus amigos, Leonardo sonhava em se mudar para a capital de São Paulo por acreditar que o mundo de onde vinha era muito pequeno, muito limitado para suas pretensões, para seu desejo de liberdade. Me incomodava, e ainda me é incômodo nos dias de hoje, visitar minha cidade no interior e me perceber o único homem gay do ambiente. Em São Paulo, encontrei o conforto de não temer por sair da linha demais. Afinal, somos muitos.
Mas a violência continua sempre ali, à espreita. Quando soube da história completa, que Leonardo havia marcado o encontro no dia anterior e que havia enviado a localização e a conta do assassino para seus amigos, pensei que na verdade ele foi bastante precavido. Eu mesmo, assim como conhecidos meus, nos colocamos em situações de maior risco, sem avisar à ninguém, combinados do momento, embriagados. Por essa razão, sou incapaz de compreender o impulso de culpá-lo por ser imprudente, exceto se quem o faz não só anseia pela demonstração de uma superioridade intelectual e virtuosa anti-sexo, como considera o Outro uma grande ameaça em sua vida.
Se sabemos do perigo, então por qual razão o fazemos mesmo assim? Essa pergunta ridícula, essa mera performance de virtude e de superioridade moral, que além de tudo fede a projeção de uma insatisfação sexual própria, é dos argumentos mais frustrantes que fui obrigado a testemunhar. Se essas pessoas realmente se importassem com os perigos do mundo, não dirigiriam carros ou, então, reconheceriam que a maioria dos casos de violência provém de conhecidos, familiares, amigos. Homens gays são sempre bodes expiatórios para a depravação, para a promiscuidade, para a desvirtuação das expectativas sociais da vida sexual. Pessoas queer, em geral, representam sempre uma ameaça para o ordenamento social e, por seu caráter dissidente, são sempre culpadas pela violência imposta contra elas. Essa violência sempre vêm de uma necessidade de serem domados, de andarem na linha novamente, de abrirem mão de seus comportamentos, no caso sexuais, desviantes e de seus desejos e anseios por se diferenciarem do status quo.
Vocês acreditam que somos dados a escapismos infundados, que acreditamos em coisas impráticas, impossíveis, que nunca serão realidade. Que é impossível, além do mais inútil, acreditar em um mundo em que o ser humano não seja dividido pelo binarismo de gênero, que essa divisão seja por si só uma violência política, que a experiência sexual não seja utilitarista heteroreprodutiva ou uma batalha de poder, mas sim uma troca, uma partilha entre iguais. Desconhecem a própria história, acreditam no ridículo mito do “sujeito universal”, traçam as fronteiras com suas linhas imaginárias e nos culpam por cruzá-las. Usam dessa ridicularização para desarticular, para desmobilizar, para matar o espírito e a memória.
Desde o ambiente acadêmico até aos meios de comunicação, agem como se fosse narcisismo argumentar que somos arbitrariamente caçados por nossas experiências. Argumentam que é necessário menos rigidez, que é preciso conceder, que nunca é hora de falar sobre violência homofóbica ou transfóbica, sobre direitos das mulheres, sobre corpos PCDs, sobre pautas raciais. Aquilo que vocês chamam de narcisismo, de identitarismo, eu chamo de dissidência política. Que esse seja um manifesto pelo narcisismo, que possamos desvirtuar os argumentos em busca de uma universalidade para que tudo nos seja estranho. Porque não deveria ser normal ver pessoas dormindo nas ruas enquanto edifícios permanecem abandonados, não deveria ser normal uma frase dita por outra pessoa como “é menino” ou “é menina” definir toda sua existência terrestre, não deveria ser normal um jovem gay ser assassinado ao marcar um encontro em um aplicativo direcionado à homens gays. Se preciso escolher entre ter medo ou ser livre, prefiro tentar engolir meu medo ao invés de permitir que ele me devore.
Descanse em paz, Leonardo. Espero que tenha conseguido viver um pouco da liberdade que sonhava.
Para esse mês, recomendo dois outros textos que escrevi nesse intervalo de 30 dias. O primeiro, “Você faz falta”, é uma coletânea de desabafos escritos ao longo de anos pela dura realidade que é se relacionar com o patriarcado, com suas ausências e suas onipresenças. Mais ainda, é sobre a dor de tentar cultivar relações em que você seja humanizado por pessoas que sempre encontram uma forma de culpá-lo por suas infelicidades. O segundo, “Ninguém está olhando.”, é uma experiência de solitude e desejo — e muito amor pela água. Fui inspirado pela canção The Water de Indigo de Souza e pelo filme I Saw The TV Glow (2024) de Jane Schoenbrun, que inclusive são duas recomendações extras que ofereço para esse mês.
Minha próxima e última recomendação do mês é, novamente, de uma das minhas maiores referências em escrita e em produção criativa em geral, Jude Doyle. A resenha de Doyle do filme Instinto Selvagem (Basic Instinct, 1992) me prendeu desde o primeiro parágrafo, me convencendo a parar de lê-la para assistir o filme e depois revisitá-la, o que acabou sendo uma das melhores decisões que tomei esse mês. Recomendo a mesma experiência para qualquer um, em especial considerando como Doyle fecha seu texto:
Mas nós terminamos o filme com o picador de gelo debaixo da cama, a ameaça do Outro. Homens abusivos não estão a salvo quando mulheres têm poder. A heteronormatividade é ameaçada pela atitude queer. Homens héteros nunca podem exercer dominação sexual completa sobre as mulheres em um mundo com mulheres queer. Michael Douglas mata diversas mulheres nesse filme e acredita que está agindo em auto-defesa toda vez. Essa é a questão: Homens como ele sempre acreditam nisso. (Tradução minha)
Recomendações
Ninguém está olhando. por Filipe Narciso
Você faz falta por Filipe Narciso
The Lavender Menace: Basic Instinct (Paul Verhoeven, 1992) por Jude Doyle
Esse texto é a 22° edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”. Você pode assiná-la pelo link: https://filipenarciso.substack.com/