Mezanino
Ele quer perguntar uma coisa.
Eu sei disso desde a primeira vez que o vi hoje. Mesmo que tente esconder, consigo ver o malabarismo mental que acontece dentro dele. Sei que está pensando em como trazer o assunto, vejo as palavras certas que ele procura, como espera o momento certo. E, pelo visto, vai ser agora. Eu consigo adivinhar, até porque faz um tempo que estou esperando essa conversa. Ele vai dizer:
— A gente é alguma coisa?
— Como assim?
— Eu e você, o que nós somos? A gente tem alguma coisa?
— Eu não sei.. nós temos? O que você acha?
— Você não pode fugir das minhas perguntas mandando elas de volta pra mim.
Dou risada baixo e seguro a vontade de dizer “posso sim, eu te conquistei assim”. Estamos no carro dele, parados porque chegamos. É um prédio grande, que se esforça tanto para ser bonito que se torna cafona. Ele evita me olhar, encarando o nada a sua frente com um rosto sério enquanto eu admiro e absorvo cada detalhe do seu perfil. Sinto uma vontade quase irresistível de dizer algo que machuque, só para ver como o rosto dele tensionaria na minha frente. Ou então, algo tão cruel que ele ligasse o carro, acelerasse e batesse nossos corpos contra o poste mais próximo.
— Não estou fugindo da sua pergunta, só não tenho certeza sozinho do que somos.
Ele finalmente se vira para me olhar, então sou eu quem passa a encarar o dia lá fora pela janela do passageiro.
— Não vou mentir pra você, isso me deixa triste às vezes. Você sabe o que quero dizer e está evitando se expor de propósito. Eu quero você, quero que sejamos alguma coisa, namorados ou o que seja. Não quero ser só mais alguém pra você, não quero que depois disso tudo você possa só me esquecer..
Conversas difíceis geralmente evocam reações extremas ao desconforto que causam. Algumas fazem chorar, algumas terminam em gritos, e outras são assim, tão sinceras que ambos parecem desconhecidos um para o outro.
Um homem anda pelo passeio lá fora, tranquilo, trajando um uniforme social fino sob o calor de quase 40°. Por um momento, desejei ser aquele homem. Desejei aguentar o calor e o tedioso trabalho de serviço ao público ao invés de estar no ar-condicionado do carro. Não queria continuar aquela conversa, não queria dizer o que precisava dizer.
— Você não vai falar nada?
É possível que você preferia que eu não dissesse.
— Sabe, eu sempre fui uma criança diferente, solitária. Eu tentava me entender com as outras crianças, mas me sentia muito incompatível, talvez muito cheio de si, maduro demais. Quando meus pais chegavam em casa, já no fim do dia, eu queria que eles fossem capazes de brincar comigo, me dar atenção, e eles davam seu melhor, mas tinham uma vida extra para ajeitar depois do trabalho. Eu me sentia sozinho, porque não conseguia ter amizade com as outras crianças. Elas não assistiam aos mesmos desenhos que eu, não sabiam tanto sobre os jogos que eu jogava ou sabiam tanto sobre internet quanto eu. Eu pensava que era o único, seja lá o que isso significa. Foi só depois de adulto que tive uma realização, não como epifania, mas como uma série de mudanças consecutivas, que me fizeram perceber que eu era todo mundo. Que aquelas crianças que eu pensei que não me entendiam, também queriam que os pais delas brincassem com elas. Que preciso de segurança, assim como você precisa agora, assim como me pede agora. Você é bom, bom de verdade. Não digo isso porque não o namoraria, eu o escolheria hoje e talvez sempre. Eu só não sei como me vincular aos outros. Talvez eu não acredite em mais nada, mas meu vazio interno se acalmou, virou só um sussurro depois de tanta inquietação. E então conheci você. Conheci outros, também, mas nada como você. Você já pensou nas pessoas que você não conhece? Já tentou se transportar pra longe de você o suficiente pra sentir que não era você, ali, quando as coisas aconteciam? Já pensou em todas as pessoas que você não pode ajudar? E naquelas que você pode, mas escolhe não fazer nada? Eu penso nelas o tempo todo.
Abaixo a cabeça, constrangido, derrotado, com os olhos pesando um pouco mais que o normal. Sinto que não vou conseguir terminar de falar, que o sono vai tomar conta de mim e vou perder a consciência, só acordando daqui a algumas horas, no banco de trás, sozinho. Sinto que vai ser como dormir em uma viagem de carro longa e cansativa, que você ainda vai dar um jeito de me deixar em casa com segurança.
— Não quero que você se sinta traído. Se o que você precisa é lealdade, do tipo de lealdade que o resto do mundo deixa de existir, algum dia eu poderia ter te oferecido isso, mas não mais.
Penso na solidão dessas pessoas, assim como penso na sua, agora. Se apesar disso tudo, ainda é o que você quer, adoraria ser alguma coisa com você. Podemos subir agora?
Sem me olhar, você concorda com a cabeça.