Manifesto arquivista
Três datas importantes para se entender um término. Nove vezes em que ouvir um não me fez chorar. Sete comprimidos que você toma de uma só vez. Seis tapas que você se dedica a esquecer. Um que você decide para sempre lembrar. Doze vezes em que você tentou me convencer de que eu era melhor do que isso. Duas chamadas telefônicas que mudam sua vida. Um registro de tudo que não consegui dizer.
— Não sinto saudade de você, mas sinto falta da minha ingenuidade. O deslumbramento que eu sentia, o quanto eu era capaz de acreditar. Desde que tudo aconteceu, só não consigo mais. Qualquer pessoa que me trate com carinho, me diga coisas bonitas, não desconfio de suas intenções, só não acredito que aquilo é realmente para mim. Tudo virou uma espécie de cinismo, toda forma de afeto uma tentativa de baixar minha guarda. No começo, me importava muito, sentia que tinha algo errado comigo, que os outros eram inocentes e eu era defeituoso. Hoje, não me importo mais com os outros, mas gostaria de ter de volta o que você levou de mim. Ainda queria conseguir confiar em mim mesmo de novo, algum dia. Deixar de me sentir fraco e estúpido por ter confiado tanto em você. Deixar de viver nessa eterna desconfiança, de acreditar que minhas vontades me enganam, de achar que nada de bom pode acontecer comigo. Você sequer é tão intencionalmente ruim assim, mas penso que perdi muito por sua atitude deliberada. Eu queria tanto acreditar em você. Queria tanto acreditar que você me amava. Queria tanto acreditar que eu não era tão sozinho assim. Que as coisas não precisavam ser assim. Tudo que era romântico, tudo que era essa ideia de envolvimento a dois especial deixou de significar qualquer coisa pra mim. Meus vínculos nunca mais foram românticos, ao menos com a mesma emoção. Nunca mais consegui acreditar que o vínculo romântico genuíno exista. Sei que não sou inocente. Nem sempre fui o melhor para você, nem sempre desejei o melhor para você, muitas vezes esperava que você desistisse de você para se importar comigo. É só que eu realmente acreditei que poderíamos dar um jeito. Aceitei que tudo acabasse, mas eu ainda acreditava e continuei acreditando. Tenho medo de que só vivemos as coisas de verdade uma única vez e todo o resto é uma repetição, um voyeurismo, uma mimese da experiência inicial e que, por isso, vou pra sempre repetir aquele dia com quem quer que apareça no seu lugar. Tenho medo de que eu selei meu destino por um desejo adolescente imprudente de ser amado, de finalmente ser gostado de verdade por alguém que eu gostava de volta. De poder dizer “eu te amo” para outro rapaz, sem medo, sem nada. Diferente de você, eu vou fazer as coisas funcionarem. Diferente de você, eu não voltei atrás. Diferente de você, eu vou conseguir. Eu só nunca mais vou me sentir do mesmo jeito. Nunca mais a sinceridade da emoção que eu compartilhei com você vai estar comigo. Não consigo oferecer aquilo pra mais ninguém, nem para mim mesmo. E eu sinto falta de algo que, provavelmente, você nem se deu conta de que estava ali. É o que não consigo esquecer, não posso te/me perdoar porque perdoar é esquecimento e eu me recuso a esquecer. Eu me recuso a pensar que tudo bem. Eu nunca tive a ingenuidade de uma criança porque desde tão cedo tive que aprender e perceber que era diferente dos outros. Sentir na pele o estranhamento dos adultos e das outras crianças, nunca me sentindo à vontade comigo mesmo. Eu me sentia à vontade com você. Eu não sentia a necessidade de continuar performando uma suposta normalidade como fazia com os outros, sentia que você era a primeira pessoa que entendia e me respeitava mesmo quando eu não fazia sentido, mesmo quando eu criava cenários elaborados sobre coisas infinitamente pequenas, me preparando sem motivo para a violência. Senti que você era a primeira pessoa que se importava com minhas particularidades, que não me julgava por me isolar tanto, por me manter tão sozinho e distante dos outros. Senti que sempre seria meu melhor amigo, independente do que acontecesse, do quanto brigássemos ou nos apaixonássemos por outros. Eu pensei que você estaria ali. Pensei que os pensamentos que eu escrevia sempre seriam lidos por você, de um jeito ou de outro. Queria que alguém pagasse por tudo que aconteceu, alguém além de mim. Queria deitar minha existência cansada e não me ver mais o único responsável por tudo que conheço. Mas alguém precisa lembrar.
Apenas um vencedor. Quem escreve a história de quem foi derrotado? Você vai para casa depois da nossa conversa e, em menos de um mês, se esquece do que aconteceu. Mesmo sem nenhum registro escrito, fotográfico, ou qualquer forma de validação documental, tudo permanece vivo, continua acontecendo a partir da memória. Da memória se transforma o relato. Do relato se constrói a história. A história singular, a história que compartilhamos e a história como fenômeno social. O quanto do que vivi é experiência compartilhada com pessoas que sequer vou conhecer? Por que eu não deveria falar sobre tudo? Por que eu deveria me esquecer? Não sou um homem de tradições, mas sinto a obrigação de velar meus mortos.
Lembrar é revolta. Lembrar é indignação, é raiva concentrada. Lembrar é autopreservação. Lembrar é justiça, pulsão de vida. Lembrar é não se omitir da responsabilidade de uma narrativa. Quando a justiça for feita, ainda vou lembrar. Poder é lembrar.