Máquina de caracteres
—Apesar de já ter amanhecido, as luzes da rua continuam acesas.
— Parece que finalmente se apagaram. O último poste que passamos não estava aceso.
— Eu acho que aquele nunca se acendeu.
Do lugar de onde venho, as estações são todas parecidas. O sol brilha e faz calor todos os dias do ano.
As mulheres se maquiam e preparam a comida. Um bolo assa no forno.
O baixista toca baixo.
Você abre a torneira e, lá fora, a tempestade que você não sabia existir vem se aproximando. A rajada de vento e as gotas de chuva parecem estar vindo de toda parte. Em poucos segundos, o barulho domina sua casa, está na porta, nas telhas, nas janelas. Você ouve o mundo ao seu redor balançar, mas nada vê do que acontece lá fora. Você termina de lavar os pratos e coloca um pano debaixo da porta. Tudo vai acontecer de novo.
A escolha em si pouco importa. O valor está no direito de tomar a própria decisão.
Você não é a criatura, mas ela depende inteiramente de você.
O baixista toca ainda mais baixo.
Anseio pelo fim do delírio autoajuda. Gostaria que as pessoas soubessem mais sobre como podem se destruir ao invés de como se sentirem melhores.
Sei que o tempo é uma bomba que já explodiu, está explodindo, e que vai explodir todas as vezes.
Não precisava tocar, não precisava ir até elas. Estava contente em apenas ver, em apenas admirar todos os dias.
A verdade é que não sei como resolver tudo, mas posso ao menos ser sincero sobre como me sinto.
Você abre a torneira e, lá fora, a tempestade que você não sabia existir vem se aproximando. Os seus olhos marejados deixam tudo turvo e é impossível reconhecer se ainda há sujeira na louça que você se força a lavar. Foram horas deitado em sua cama, se sentindo mal por não conseguir fazer algo tão simples quanto lavar a louça. Mais um dia inteiro sem ver o sol, sem ver outra pessoa, sem usar sua voz. A chuva está tão forte que vence a batalha contra a música nos fones de ouvido. Você termina de lavar os pratos e coloca um pano embaixo da porta. Você vai viver esse dia de novo.
Queremos reconhecer em nós mesmos o que sempre celebramos nos outros.
Nunca gostei de citações. Pouquíssimas são as frases, para mim, que se sustentam sem a estrutura de um parágrafo e um contexto.
Nada de bom acontece em um domingo à noite.
Queria que pudesse ser possível construir um corpo ou uma produção teórica que tornasse impossível alguém ficar rico às minhas custas. Pergunto-me com frequência se existe alguma forma de manter as pessoas que odeio afastadas das coisas que amo.
Esse desconforto vive na minha cabeça: a dúvida de se as pessoas mais sem princípios que já conheci gostariam do que escrevo. Ainda bem que o que escrevo não interessa a ninguém.
Uma criatura sobe pelo meu corpo, por debaixo da minha pele, do lado direito da minha cintura até o pescoço, me obrigando a me contorcer. Raiva, nojo, selvageria.
Um cachorro. Um ciclista. O três de espadas. O bolo assando no forno. Está escurecendo, mas as luzes ainda não se acenderam.
História > memória/esquecimento > vida
Talvez a autoteoria seja minha forma de me esconder. Talvez eu use a linguagem acadêmica como falsa prerrogativa para conseguir validar minha experiência queer e sentir menos vergonha das minhas inadequações.
Tudo que você esconde volta para te morder algum dia.
Eu acho que o amor é uma raiva, uma raiva incontrolável. Sou apaixonado pela sua sensibilidade. Ouvir as músicas que você gosta me faz chorar. Conhecer mais do seu mundo me faz mais feliz.
És lo que tiene enamorarse de mí.
Sempre quis envelhecer o mais rápido o possível, deixar tudo aquilo para trás, esquecer a vida que fui forçado a viver. Começar de novo, tentar de novo, sentir menos tristeza, menos dor.
Você abre a torneira e, lá fora, a tempestade que você não sabia existir vem se aproximando. Tão rápido quanto a chuva, você termina de lavar os pratos e tira o bolo do forno. O cheiro te lembra afeto. Você fica emotivo, se recordando de tudo que teve que abrir mão para estar aqui. A chuva se intensifica e o seu cheiro se funde ao do bolo quentinho. Está gostoso, mas não é tão bom quanto o da sua mãe. Nunca vai ser. Você termina de comer a fatia e coloca um pano embaixo da porta. Esse dia nunca vai se repetir. Tente não se esquecer.
Começo minhas recomendações do último mês do ano com um conto curto de terror que escrevi no começo do mês. “Pressão” é uma experiência sensorial sobre culpa, relações interpessoais, espelhamento e responsabilidade social. Espero que seja uma leitura bem desconfortável.
Minha próxima recomendação é o vídeo-ensaio de Shanspeare, uma das minhas vídeo-ensaístas favoritas da plataforma YouTube, sobre a tendência recente de inserir o marcador de gênero “girl” em diversos padrões de comportamento considerados “femininos” e que se diferenciam do estilo de vida masculino. Shanspeare pontua, com uma argumentação muito consistente e minuciosa, como essa tendência a categorização do feminino como indicativo de pureza sempre leva a transfobia e ao racismo.
Minha próxima recomendação é o vídeo de Alexander Avilla sobre a relação entre o movimento Brat de Charli XCX e a cultura do vício do capitalismo tardio. Utilizando conceitos de Preciado, em especial sua noção de farmacopornografia, Avilla especifica como o álbum e o movimento gerado por ele são produtos de seu tempo, em especial a forma como somos motivados a consumirmos, a gerarmos e gastarmos capital de forma passional, como se isso refletisse quem somos. Everything is romantic.
Por fim, recomendo o vídeo do canal Micro sobre os anunciadores do YouTube e sua moralidade e mercados dúbios e questionáveis. Recomendo o vídeo principalmente por ele ter me inserido ao conceito de blitzkrieg econômico. O blitzkrieg era uma tática de conquista de território de guerra utilizado pelo exército alemão em que eles utilizavam toda a força ofensiva contra o inimigo antes sequer do apoio e os recursos necessários para manter o local conquistado tenham chegado até eles. De forma similar, startups e plataformas como a Uber e o Ifood se aproveitam de brechas jurídicas para construir impérios extremamente rápidos e, com isso, já serem corporações consolidadas quando governos forem considerar legislá-los. A velocidade como arma.
Recomendações
Pressão por Filipe Narciso
Girl Math & Girl Power: The Conservative Politics of ‘Girl World’ por Shanspeare
Brat and the Culture of Addiction por Alexander Avilla
Esse texto é a 28° edição da minha Newsletter “Palavras de Narciso”. Você pode assiná-la pelo link: https://filipenarciso.substack.com/