Love Lies Bleeding (2024): O amor é uma raiva incontrolável

Filipe Narciso
4 min readMay 5, 2024

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Ilustração própria. Pôster por A24.

Em um dos melhores filmes do ano, acompanhamos o casal lésbico/sáfico composto por Jackie (Katy M. O’Brian) e Lou (Kristen Stewart) em uma espiral de amor e violência. Ambientado nos Estados Unidos dos anos 1980, Love Lies Bleeding, dirigido por Rose Glass, é deliciosamente agressivo e romântico. Nele, a vida das duas mulheres se entrelaça após a fisiculturista Jackie frequentar a academia em que Lou trabalha. Se a ideia de mulheres fortes se beijando não é o suficiente para vendê-lo como um bom filme, gostaria de defender que Love Lies Bleeding possui uma das visões mais cruas e grotescamente bonitas da sensação de amar.

Aviso: essa resenha contém spoilers

Love Lies Bleeding é extremamente erótico, no melhor sentido possível. É um filme que exala tesão, romance, paixão em um estado puro de admiração e entrega. A química entre as protagonistas é palpável, sentida desde os momentos de romance explícito até os grandes desentendimentos entre elas. Jackie e Lou se desejam, se reconhecem e compartilham uma com a outra o pouco de suas vidas que estão dispostas a reconhecerem por si mesmas.

No entanto, essa admiração e entrega passam pelo processo cruel de subversão inerente ao encanto. Apaixonar-se é cruel, é desilusão contínua. É, ao mesmo tempo, insuficiente e tudo que importa. Ambas personagens são colocadas a prova em relação a seu comprometimento com suas vidas, seus desejos, e seus impulsos de permanecerem juntas. Amar as destrói, destrói suas forças de vontade. Por um lado, Jackie deseja se aprimorar constantemente, estar no seu máximo físico, experimentar com seu corpo, construir novos limites, passar seus próprios limites. Lou, por sua vez, é mais reclusa, se atribui a responsabilidade de cuidadora de sua irmã que está em um relacionamento abusivo com seu cunhado, evita seu pai, mas vive pela sua família. Ambas personagens são evasivas em relação a si mesmas e suas histórias. Somos apresentados às pretensões de Jackie como uma forma de fugir do modo de vida interiorano religioso de onde veio. Enquanto isso, Lou é a personagem ferida que evita ter sonhos e pretensões, sua personalidade é marcada pela falta. Jackie faz de tudo para fugir de onde veio, enquanto Lou parece sempre evitar reconhecer onde se está.

Com o desenrolar do filme, a tensão entre as personagens cresce e implica em um assassinato, que um poderia argumentar bem intencionado. Sob efeito do anabolizante que Lou a havia dado, Jackie visita o cunhado de sua amada e o assassina violentamente, sem escrúpulos. Essa morte implica na complicação entre as personagens, pois viola uma regra secreta do equilíbrio presente na vida de Lou. De modo literal, ao matar o cunhado de Lou, Jackie se imagina fruindo um dos maiores desejos de sua amada, mas na verdade sua ação implica em um rompimento no equilíbrio das dinâmicas da vida de Lou, o que a obriga a reconhecer o agora. Com o fim da fachada do que a mantinha presa a sua família, descobrimos que o seu problema principal é, na verdade, a figura de seu pai.

Após a morte do personagem de Dave Franco, o filme passa por uma guinada em direção a ser temido no lugar de ser amado. As personagens passam a desconfiar uma da outra, se estranham, se veem como estranhas. As projeções que possuíam se complicam, se envolvem na contradição de um inimigo, de mal intencionado. Jackie é incapaz de entender como sua boa ação, só potencializada pela droga que Lou a deu, poderia lhe causar sofrimento e a fazer ser punida. Lou, por sua vez, passa a se sentir incompreendida, mal interpretada. Dessa divergência de comunicação e esclarecimento de vontades, a distância entre as personagens cresce e se escancara também o ódio de si delas. Ambas se tornam mais egoístas, se apegam a suas próprias vidas, ignoram combinados e se tornam mais individualistas. Essa disrupção as faz tentar retornar a suas vidas anteriores, mas o quanto dessas existências já não eram destruídas o suficiente antes do amar? Jackie é negada por sua própria família, vive uma vida itinerante, com sonhos distantes de apreciação e transcender o próprio corpo. Lou, por sua vez, é insatisfeita com a vida que leva, não gosta de seu trabalho, é explorada a vida toda por seu pai e, para não reconhecer essa dinâmica, se convence de que permanece nessa vida para ajudar sua irmã.

Amar é o mais próximo de salvação que elas possuem. E é isso que acabam por reconhecer quando tudo em suas tentativas de restaurar o equilíbrio de seus egos é destruído. Lou e Jackie são atraídas novamente uma para a outra, queimando em ciúmes, raiva, inseguranças, impotências, incapacidades. Sentem que precisam uma da outra, apesar das violações e da violência física e psicológica. Boa decisão ou não, retornam uma a outra e desferem essa violência acumulada pelas experiências de vida assomadas a um tesão e desejo avassaladores nas outras personagens do filme. Nem mesmo a irmã de Lou, que ela afirma o filme todo estar dedicada a proteger, se livra de ser vítima de sua ira. Com a ajuda de Jackie, Lou derrota o próprio pai e é capaz de também se livrar de seu passado, sendo capaz de abrir sua vida para uma nova experiência ao lado da pessoa amada que quase tirou sua própria vida diversas vezes durante o longa.

Essa violência irresistível, essa violação de si, esse desejo autodestrutivo. Talvez isso seja o amor. Se não o é, definitivamente é o mais próximo de amor que todo o tesão e a entrega de Love Lies Bleeding nos oferece.

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