Love bombing e outros crimes
A primeira vez que ouvi falar em love bombing me senti ofendido como se fosse um ataque pessoal.
Diferentemente da ideia de softboy, que se trata de um personagem, uma máscara utilizada por homens heterossexuais que fingem se importar com emoções e sentimentos para poder ter relações sexuais, o love bombing é uma expressão exagerada e desproporcional de afeto em um curto período de tempo. É como a expressão “ser emocionado”, mas com um subtexto controlador e autoserviente. A prática é, sem nenhuma piada pretendida da minha parte, associada ao caráter narcisista.
O ponto central da discussão seria que o indivíduo realiza todos esses rituais e demonstrações em busca de receber apreciação em retorno. Seria tão imperdoável assim pedir para ser apreciado? Sequer a nível público, mas privado, por alguém a quem se pretende dedicar-se de volta.
Existem pessoas sem necessidade de toque ou que precisam de tempo sozinho com frequência enquanto outras anseiam por contato físico ou arranjam qualquer pretexto para estarem rodeadas de pessoas. Portanto, o temido love bombing me parece uma forma prática e rápida de expressar suas vontades e desejos particulares e descobrir se o outro está emocionalmente disponível para tanto.
Socializado como homem, me assombra qualquer ponto de vista em que demonstrações de afeto são algo a ser contido. Levei um tempo considerável para me ver em paz com meu lado afetuoso e carente. Até hoje poucas palavras me deixam tão desconfortável quanto “carente”. Sentir que preciso de atenção ou afeto sempre me parece um fracasso pessoal.
Sei que a principal crítica é quando essa prática é usada como uma ferramenta de coerção a fim de criar dependência na outra pessoa, fazê-la ser vista em busca de fazer com que dependa de você. Entretanto, se cria um discurso generalista e de culpabilização facilmente deturpado ao considerar o afeto como perigoso. Talvez tudo seja perigoso e o afeto nada mais é do que mais um meio de veicular desejos, anseios. Me parece que uma sociedade que teme o afeto teme também o desafeto, pois teme qualquer coisa que não seja a indiferença, a completa autonomia, o individualismo.
Muitas são as nuances presentes nas relações humanas e seus desdobramentos, mas a utilização de tais nomenclaturas se assemelha a uma patologização dos comportamentos e das emoções. Alguns de nós só são românticos, ou se entregam rápido demais, ou gostam de grandes demonstrações de afeto sem nenhum pretexto secreto.
Para dar início a 2023, sugiro a leitura da reportagem “Love bombing”: o que há por trás das demonstrações exageradas de amor de Heloísa Noronha para melhor compreensão dos discursos que permeiam a expressão e meu consequente desconforto.
Recomendo também o vídeo ensaio Women are Meat: Silence of the Lambs is a Movie about Womanhood de MertKayKay, pelo qual analisa as formas como o filme O Silêncio dos Inocentes (1991) trata de feminilidade, além de discorrer sobre as ferramentas narrativas do filme. Entre uma série de pontos relevantes presentes no ensaio, gostaria de frisar a discussão levantada ao final sobre intenção do autor e recepção pública, especialmente no que concerne à representação de minorias e comunidades marginalizadas.
Alguns meses atrasado, recomendo a gravação do evento de discussão do livro Communists in Closets de Bettina Aptheker, em que a autora explora a história de pessoas não hétero e queer ligadas ao partido comunista estadunidense. Com uma perspectiva pessoal e íntima, Aptheker, mulher cis lésbica comunista e professora emérita da Universidade da Califórnia Santa Cruz, apresenta algumas das histórias de antigos companheiros presentes no livro e comenta a situação social do partido comunista e a comunidade LGBTQIA+ no século passado nos EUA.
Fechando a primeira edição do ano, recomendo a resenha The Crane Wife’s Questionable Life Lessons de Rachel Connolly. Nela, Connolly critica a generalização e as decisões discursivas do livro The Crane Wife de CJ Hauser, que trata sobre como mulheres heterossexuais sacrificam seus desejos e vontades em prol do conforto de seus parceiros. Ainda que entenda as pretensões de sua crítica, não me parece que ela tenha tido profundidade e habilidade argumentativa para defender todos os pontos apresentados. Ainda assim, creio que possui um ponto legítimo e, mais ainda, sua resenha me informou que o avô da CJ Hauser, por acaso, fora presidente da CBS News. Caso queira ler o ensaio de Hauser que deu origem ao livro, ele está linkado no corpo do texto de Connolly.
Finalizando a edição desse mês, queria deixar uma dedicatória para o Pedro Guilherme Costa Massa, o eterno Dani. Você foi responsável por algumas das minhas risadas mais sinceras em todo o período de graduação e sempre vou recordar esses momentos com muito carinho. Penso que você acharia engraçado se eu te contasse que, quando recebi a notícia, senti raiva de você e de seus amigos, porque pensei que fosse uma brincadeira de mau gosto. E, em alguma medida, ainda sinto que é. Vou seguir esperando te encontrar nos pequenos corredores do CJE.
Recomendações
“Love bombing”: o que há por trás das demonstrações exageradas de amor por Heloísa Noronha
Women are Meat | Silence of the Lambs is a movie about Womanhood por MertKayKay
Communists in Closets — A Book Discussion With Bettina Aptheker por Bettina Aptheker
The Crane Wife’s Questionable Life Lessons por Rachel Connolly
Esse texto é a quinta edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”, pela qual você pode assinar através do link: https://tinyletter.com/FilipeNarciso