Jogos de azar
Ser curioso ou disfarçadamente intrometido é algo perdoável, outra é ser obrigado a quebrar o silêncio com um “oi, desculpa incomodar, você tem um minuto?”
De vez em quando, menos raramente do que deveria, sinto um forte desconforto na prática jornalística. Geralmente essa sensação se resolve com o respaldo de depender de formas pragmáticas, profissionais, pouco invasivas de praticar a arte de ser uma criança que ainda está aprendendo os básicos de existir e que dedica todas as suas palavras a um fluxo aparentemente infinito de perguntas.
Esse mês não pude depender disso se eu quisesse obter meu diploma. Invadi o espaço de outras pessoas como se eu quebrasse uma barreira instituída não verbalmente, uma regra não falada, mas institivamente compreendida por todos envolvidos naquele espaço. Eu não sou assim. No dia seguinte, como se nada tivesse acontecido, voltei e fiz o mesmo ritual de sempre: boa tarde, tchau, até amanhã. Ou talvez eu seja assim. Afinal, por gostar de escrever, parece que sou constantemente uma espécie de espião, um infiltrado que pode se transformar a qualquer momento de pessoa quieta e desinteressada em alguém capaz de dedurar tudo que vê.
Um fenômeno estranho que tenho observado com desconforto é uma movimentação, um enraizamento bizarro de jogos de azar em diversas esferas do lazer. Times de futebol financiados por bets e suas propagandas em bancos de ônibus, máquinas de pegar brinquedos ocupando salas inteiras em shoppings, a dominação de jogos de cassino entre os apps mais baixados da play store.
Eu entendo o vício em jogos de azar. É tão prazeroso quando o melhor acontece. Vencer, conseguir, chegar lá, ter sorte. Mas, ao mesmo tempo, é tão reconfortante quando tudo dá errado. Toda a ânsia passa, vem uma espécie de melancolia autoindulgente, pobre de mim. Sempre dá pra tentar de novo (e fracassar mais uma vez). Acho reducionista considerar que o único apelo de jogar é vencer. Queria ser um melhor perdedor, mas não sou acostumado a ser derrotado.
Sinto que fortuna é um sinônimo de sorte, mas sorte não é um sinônimo de fortuna. Não, ao menos, no seu sentido mais conhecido hoje. A roda da fortuna gira aleatoriamente, pois o destino é imprevísivel. É mais fácil perder.
Esse mês foi daqueles em que meu consumo de mídia foi um pouco acima do normal para meus parâmetros, especialmente em relação a um tipo de conteúdo que detesto: séries. Não gosto de séries porque sinto que, por conta de regras gerais do capitalismo, suas histórias são colocadas em segundo plano em relação a sua rentabilidade. Ou seja, se são bem sucedidas, seus criadores passam a tirar leite de pedra para estendê-la enquanto ela gerar lucros e, quando não o são, terminam sem completar sua história. Assim, as narrativas parecem desconexas, confusas, sem porquê de existirem. Se não chegam a um final, não tem porquê de terem um desenvolvimento.
Algumas, no entanto, me chamam a atenção de vez em quando. Foi o caso de Swarm/Enxame (2023). Faz algum tempo que penso constantemente no quanto a experiência humana hoje se baseia em relações parassociais e Swarm trata perfeitamente, com um humor ácido e misturando elementos de surrealismo tão próximos da realidade que beiram um certo camp, a relação de uma fã com sua ídola. Após assistir a série, encontrei esse texto muito interessante de Brienne Adams, professora do departamento de Estudos Afro-americanos da Universidade de Georgetown que é fã da Beyoncé (a artista na qual a série é baseada) e que ministra aulas sobre cultura popular. Diferentemente de mim, ela tem fortes críticas ao seriado que respeito e considero muito interessantes. Meu trecho favorito do texto, que gostaria de expressar aqui, é quando ela afirma, em tradução minha:
“Eles [seus alunos] me recordam com frequência de que não é o suficiente pensar na cultura pop apenas no vórtice das suas escolhas criativas ou do capitalismo e do branding, mas precisamos também pensar na ressonância, na relevância, e na significância que esses objetos culturais possuem em nossas vidas”.
Por falar em consumo de mídia, preciso comentar sobre esse novo filme de conspiracionistas estadunidenses que apareceu uma propaganda patrocinada até mesmo em minhas redes sociais. O filme Som da Liberdade (2023) chega ao país apoiado pela mídia difusora de fake news e fascista Brasil Paralelo e é baseado em uma série de pânicos morais, como do clássico antissemita libelo de sangue, em um momento que a sociedade conservadora estadunidense se volta contra a comunidade LGBTQ+ como sendo responsável por corromper suas crianças. Na matéria que recomendo, Pablo Vilhaça explica como o filme tem distribuído ingressos gratuitos para inflar seus números de bilheteria.
Estive obcecado por uma artista nova chamada underscores essas últimas semanas. Decidi conhecer melhor a pessoa por trás das minhas produções musicais favoritas desse último mês e descobri uma artista trans de um gênero que vi ser definido como Queer emo dubstep, o que me tirou uma bela risadinha. Nessa entrevista pra Ali Shutler da NME, underscores faz uma fala que me impactou bastante. Na língua original:
“The main reason I do music is to give people a world to jump into. I don’t know if it’s escapism because it’s so rooted in the real world, but I’m definitely trying to put someone somewhere else. I want other kids who have this need to tell stories or communicate something, to feel like they can.”
Traduzido por mim:
“A principal razão pela qual eu faço música é para dar às pessoas um mundo onde podem adentrar. Eu não sei se consideraria escapismo porque é tão enraizado no mundo real, mas eu definitivamente estou tentando colocar alguém em outro lugar. Eu quero que outros jovens que têm necessidade de contar histórias ou comunicar alguma coisa sintam que eles conseguem”.
Recomendações
Intentionally Hyperfocused: On Amazon Prime’s “Swarm” por Brienne Adams
Som da Liberdade e o mistério dos ingressos gratuitos por Pablo Vilhaça
Underscores: “I think hyper-pop is officially dead” por Ali Shutler
Esse texto é a 13° edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”, pela qual você pode assinar através do link: https://tinyletter.com/FilipeNarciso