Indiecações: “Any Shape You Take” de Indigo de Souza

Filipe Narciso
4 min readSep 11, 2021

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Ilustração própria. Arte do álbum por Saddle Creek Records.

A auto depreciação é um sentimento sufocante e incisivo. Perdas, decepções, rejeições e angústias, por vezes pequenas, passam a ser marcadas por visões de insuficiência, ingratidão, incapacidade. Essa percepção de si, entretanto, não inibe a força do carinho. Localizado em uma luta entre a brandura e a punição, “Any Shape You Take”, produzido pela cantora e compositora Indigo de Souza junto ao produtor musical Brad Cook, confronta exatamente a profundidade dessas feridas com uma sinceridade despretensiosa, mas extremamente potente.

Segundo álbum da artista identificada por sua sonoridade Indie Rock/Pop com uma pitada de Punk, Any Shape You Take foi lançado no dia 27 de agosto sob o selo da Saddle Creek Records. Filha de um músico brasileiro, Indigo de Souza nasceu na Carolina do Norte e se interessou por música desde jovem. Com o apoio da mãe, começou a criar suas próprias canções aos nove anos de idade. Produziu dois EPs independentes entre os anos de 2016 e 2017, nomeados Boys e Don’t Cry Just Do, respectivamente.

Em junho de 2018, a cantora lançou de maneira independente seu primeiro álbum, I Love My Mom. Em um acordo com sua gravadora, o álbum foi relançado comercialmente em abril de 2021, três anos após o lançamento independente e poucos meses antes da chegada de seu sucessor.

Em Any Shape You Take, a cantora e sua banda misturam sonoridades que vão do bedroom pop ao grunge, sempre mantendo a mesma premissa sonora que permite a sensação de fluidez da obra. Esses estilos atravessam as camadas que vão do auto ódio ao amor pelo próximo, transmitindo ideias latejantes de raiva, intimidade, entorpecimento, companheirismo e dor.

Logo em sua primeira faixa, 17, Indigo de Souza trata do afeto remanescente de um romance adolescente mal sucedido. “Queride, se você precisar de mim eu estarei aqui/Eu vim ao resgate” (17). Mesmo marcada pela tristeza do fim, ela é uma das canções mais afáveis do álbum junto à delicada Hold U — que em seu clipe oficial celebra a vivência de amizades queer — e Pretty Pictures, em que a cantora tenta, sem muito sucesso, superar alguém que ama.

Entretanto, a obra brilha mais intensamente sob a habilidade da compositora em expor o sofrimento. Sendo capaz de expressar uma gama de diferentes sensações e efeitos, seja pela insônia em Bad Dream, a claustrofobia de Way Out, o abandono de Darker Than Death, a auto martirização de Die/Cry ou a ameaça da separação em Late Night Crawler, ela exibe de uma forma crua — e por vezes acompanhada de uma ironia ácida — angústias difíceis o suficiente de serem sequer nomeadas. Em entrevista para Max Freedman da MTV News, Indigo de Souza defende que suas letras são “dolorosas, mas de um jeito brincalhão” e que nelas existe um “senso de humor niilista” que a possibilita processar o pavor existencial que a acompanha no cotidiano.

Essa catarse autodepreciativa do álbum atinge uma outra escala em Real Pain. Inicialmente uma canção melancólica sobre dor e perda, a melodia evolui para uma espécie de ponte marcada por gritos humanos em uma confusão infernal e ansiogênica que aparenta ser infinita. Após um clímax, De Souza retorna abruptamente, verbalizando seus anseios e retornando a sonoridade ao Indie Pop: “Eu quero chutar/Quero gritar/Eu quero saber que a culpa não é minha” (Real Pain).

Já em Kill Me, canção de encerramento da obra, é possível encontrar a máxima do senso de humor mórbido mencionado pela compositora. Pedindo continuamente para que um interesse amoroso a mate, ela se confronta, em um tom majoritariamente suave, com questões de transtorno mental, ausência de apoio emocional e a própria fragilidade dessa relação amorosa. Em um estilo descontraído, ela chega a desejar ser fodida até o cérebro derreter, possivelmente em uma estratégia de expor a dureza de desejar a própria morte suavizada por um alívio cômico — mas que em momento algum parece diminuir a seriedade do pedido.

Ao apostar em uma abordagem paradoxal e por vezes embargada em uma clichê ira juvenil, a eficácia das letras ocorre em virtude de uma execução singular. A soma da capacidade vocal de Indigo de Souza com a engenhosa e dedicada produção do álbum cria uma experiência marcante. Entre súplicas por ajuda, pedidos de perdão, afirmações carregadas de dor, gritos e harmonias, a cantora transmite uma intensa mensagem da confusão emocional própria de uma mente conturbada pela dor e decepcionada consigo mesma — e que deseja que tudo fosse diferente.

Intercalando estilos musicais e truques de produção, Any Shape You Take é uma experiência completa dentro do estilo indie atual. Recém-chegada aos holofotes, mas já experiente no mundo da música, Indigo de Souza oferece ao público um dos melhores lançamentos do ano, em especial pela coragem de não usar eufemismos e expor uma vulnerabilidade tão visceral que beira o cruel.

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