Eu respiro fogo

Filipe Narciso
4 min readApr 30, 2024

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Pela segunda vez esse ano, e talvez em toda minha vida, sofri homofobia de um desconhecido na rua. Sentado na grama, abraçado com outro rapaz, um carro passou e uma voz masculina gritou “Viadagem da porra”. Pela segunda vez, a única reação que tive foi dar risada.

A apenas alguns minutos de casa, dentro do campus esvaziado pelo fim de semana, aquele homem deveria ou trabalhar ali ou estar indo ao hospital. Pensei em sua vida miserável. Se ele se sente desconfortável em testemunhar homens gays, estar na Universidade de São Paulo deve ser seu inferno pessoal.

Existe algo inerentemente cômico para mim em ser chamado de gírias homofóbicas. Acham que não sei? Que me dizem alguma novidade? Se xingamentos costumam explorar inseguranças, não faz sentido algum me chamar de viado. Eu adoro ser viado. Uma semana depois, eu estive num festival de orgulho gay, vi de perto artistas trans que tanto admiro, vi infinitos homens se beijarem, diversas mulheres se beijarem, pessoas que não confirmo o gênero se beijarem. A ameaça da ordem cisheteronormativa pode estar sempre ali, com suas forças de repressão da sociedade patriarcal-colonial, reforçando suas regras e suas crenças, mas se sentir livre é indescritível.

Estive pensando em como não sou imune à propaganda do patriarcado. Esses últimos dias percebi que estou com o hábito de xingar os outros de inúteis em minha cabeça. Carro inútil, velho inútil, segurança inútil, etc. Não me considero utilitarista, então me questionei porque essa fixação com utilidade. Os outros parecem obstruções para o meu fim, seja ele qual for: chegar em casa, ser atendido, conseguir andar pela calçada. Para mim, são inúteis. Pessoas que não conheço, não me importo, não deverei ver de novo. Tensiono as sobrancelhas, às xingo para mim mesmo e sigo com minha vida.

É difícil admitir que meus desejos de poder não são legítimos. Perceber que sou competitivo demais, vingativo demais, que gostaria de ser desejado e invejado por todos, ser algo inatingível, capaz de tudo, acima de qualquer limite, meu ou alheio. Todos são inúteis, menos eu. Mas é por reconhecer que o mesmo patriarcado que ameaça minha vida todos os dias existe e grita dentro de mim que permaneço incapaz de compreender o auto entitamento de um homem que deseja colocar medo em desconhecidos. Argumentaria Paul Preciado em seu filme Orlando: Minha Biografia Política que ser homem não é apenas sobre ter direito à violência, mas ser obrigado a usá-la. O quanto de mim é um homem, então? Não sei a resposta, só sei que dei risada quando estive do outro lado dessa violência.

Não rio porque não tenho medo dos outros, rio porque não tenho mais medo de mim. Quando estava no ensino médio, lembro quando meu professor quis alarmar minha turma sobre a homofobia no Brasil. Ele mencionou que éramos o país que mais assassinava pessoas LGBTQIA+ no mundo. Lembro com clareza quando ele acrescentou: “Tudo isso sem campos de concentração, como fazem na Chechênia”. Não sei o que ele esperava com esse detalhe. Que eu tivesse medo do lugar em que nasci? Porque eu tenho. Tenho medo das suas ruas, dos seus homens, dos seus shoppings e dos seus condomínios. Das suas polícias e dos seus colegas de trabalho. Das suas Cidades Alertas e de seus A Tarde É Sua.

Dito isso, desculpe professor, mas eu amo ser brasileiro. Amo as músicas, as pessoas, a bagunça, o humor, a vontade de viver, a conflituosa São Paulo, os homens, a noite, o brilho, as cores, o conhecimento, a dissidência, a androginia, o questionamento, a decolonialidade, os corpos. Não há medo que irá me impedir de amar o lugar em que vivo hoje, que construí, junto a tantos outros.

Desejo que queimem em ódio então. Que possamos nos vingar de tanto tempo desperdiçado, de tanta dor, de tanta estupidez, de tanta burrice. Que o regojizo seja enorme, que os fluídos corporais sejam compartilhados, que a celebração seja tão eterna quanto a luta. E se, algum dia eu morrer por isso, que assim seja. Só assim posso viver a vida que sempre quis.

Minha primeira recomendação de leitura desse mês é sobre a extensão dos horrores do genocídio palestino novamente. Na reportagem disponibilizada pela CNN, escrita por representantes da Reuters, é falado sobre como Israel bombardeou um hospital de fertilização in vitro (FIV) em Gaza em dezembro do ano passado, causando a destruição de milhares de óvulos e espermatozoides guardados e apontando cada vez mais o seu comprometimento em completamente apagar o povo palestino da existência humana. Nenhum ser humano será livre enquanto a Palestina não for livre.

Também dentre minhas recomendações desse mês, trago um vídeo que analisa os jogos com as piores avaliações da plataforma de jogos IGN. Ainda que eu reconheça o fator misógino e prepotente em como jornalistas de jogos são mal recebidos pelo público gamer em geral, o vídeo faz um bom apanhado de informações que levam a uma reflexão sobre o que é ser crítico e avaliar jogos/obras de arte/produções em uma escala numérica e suas implicações. O vídeo apresenta como jornalistas de instituições que compõem as avaliações do site Metacritic definem, por exemplo, o pagamento das equipes por trás do jogo, a percepção de sucesso dessas produções, dentre outras situações que fazem com que, por exemplo, a IGN nunca atualize suas resenhas/críticas.

Para fechar o mês, trago a reportagem The kiss that changed video games de Simon Parkin para o The Atlantic. Em 1999, uma demonstração do jogo The Sims em um evento apresentava um beijo entre duas mulheres e isso deu à franquia The Sims, que à época estava quase sendo cancelada, a influência que ela possui até hoje, colocando o jogo de simulação da realidade como um dos pioneiros em apresentar sexualidades dissidentes da cisheteronormatividade em seu conteúdo. Para mim, é um texto leve e engraçado que demonstra claramente como não existe representação fiel da humanidade que não inclua o amor e a sexualidade além da cisheteronormatividade.

Esse texto é a 20° edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”. Você pode assiná-la pelo link: https://filipenarciso.substack.com/

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