Eu odiei Longlegs
AVISO: esse texto conterá spoilers dos filmes Longlegs (2024, Osgood Perkins), MaXXXine (2024, Ti West) e Sorria (2022, Parker Finn).
Há alguns meses estou especialmente incomodado com a ideia de propaganda. Estou sob a impressão de que, da pandemia para cá, a relação das pessoas com a ideia e o poder coercitivo da propaganda tem se enraizado cada vez mais em uma incompreensão de suas ferramentas e capacidades. O conceito de ideologia, na definição de Karl Marx, é sobre propaganda. Por isso, sinto a necessidade de criticar Longlegs.
Longlegs é um filme de terror dirigido por Oz Perkins lançado esse ano. A trama acompanha a agente do FBI Lee Harker em sua caça por um suspeito por trás de um estranho fenômeno que tem acontecido com famílias estadunidenses que se matam de forma violenta após serem contatadas por essa pessoa. Focado na criação de um suspense sobre o mistério desses acontecimentos, Longlegs foi impressionante com sua divulgação até o lançamento do filme. Quando eu o assisti, pouco depois da estreia, estava sob a impressão de que já deveria ter lançado há meses, porque havia muito tempo que ouvia sobre esse filme. A empresa de produção e distribuição Neon realmente foi implacável nesse sentido. Entretanto, apesar das minhas altas expectativas, e das minhas esperanças durante o desenvolvimento do filme, me encontrei extremamente insatisfeito com a mídia que havia acabado de assistir.
Longlegs é, em 2024, mais uma das infinitas ramificações do perigoso movimento de Pânico Satânico e Stranger Danger que influencia o imaginário popular ocidental de violência e, mais concretamente, os debates de segurança pública há mais de meio século. Ainda que o medo do Diabo e de desconhecidos não seja algo intrinsicamente atrelado aos anos 80, é a partir dos anos 80 que a veiculação midiática de bizarros rituais satânicos e de estranhos mal intencionados passa a se intensificar. Nesse processo, líderes comunitários e políticos fizeram esforços para oficializar leis de censura nos EUA e para criar um ambiente de terror no contexto urbano estadunidense. Como força de propaganda política e agendamento, esse movimento nos EUA se ramificou pela maior parte do mundo, incluindo o Brasil, fazendo com que todos tivessem medos dos satanistas.
Nessas condições, é necessário reafirmar, com frequência, que apesar de serem considerados mais como entretenimento e como gênero cinematográfico “menor”, filmes de terror não são, nem jamais podem se pretender, acríticos. De que, exatamente, você quer que as pessoas sintam medo? O impossível Outro, que poderia ser qualquer um, mas geralmente se encontra em uma minoria? Homens de aparência suspeita, seja lá o que isso significa? Pálidos ou maquiados demais, como os metaleiros e satanistas, vilões da segunda metade do século passado?
Com uma influência vintage similar a Longlegs, MaXXXine, também lançado esse ano e dirigido por Ti West, nos faz acompanhar a atriz pornô Maxine Minx na Hollywood dos anos 80 enquanto ela tenta superar seu passado, apresentado no filme X (2022), e se tornar uma atriz de cinema. Com uma avaliação de 64 pontos no Metacritic, MaXXXine teve uma recepção bem amena para negativa, em especial se comparada a Longlegs, que crava 77 no Metascore. Ainda que eu compreenda a maior parte de suas críticas, considero um bom filme, em especial considerando o desenvolvimento de seu final. MaXXXine, assim como os outros longas de sua trilogia, sempre tiveram uma abordagem mais irônica, satírica do gênero. Nele, a figura do maníaco, do serial killer que assombra as noites da cidade é desvirtuada, desrespeitada pelo quão destemida é nossa protagonista. Mas, ainda mais relevante, essa figura é diretamente conectada à igreja neopentecostal representada e comandada pelo pai da protagonista. O maníaco, que não existe como uma única pessoa, é uma artimanha utilizada para atrair pessoas ao culto, para coagir através do medo para que a população se aproxime de Deus. Representando a realidade ignorada do que formou o imaginário estadunidense de terror da segunda metade do século XX, MaXXXine deixa bem claro que é muito mais provável ter sua casa invadida por fanáticos religiosos do que por maníacos desconhecidos.
Enquanto isso, no filme Longlegs, também descobrimos o envolvimento da mãe da protagonista com o Mal do longa, mas nesse caso ela é transformada em uma serva do diabo para tentar proteger sua filha. Mesmo se trajando como freira para adentrar a casa das famílias a serem vitimadas, ela não é representante de Deus como o pai de MaXXXine, mas sim um lobo em pele de cordeiro, uma representante de um falso profeta. Apesar das similaridades narrativas entre os dois filmes, eles não poderiam estar mais separados no que concerne a noção de representação crítica da realidade. Longlegs representa o seu terror como um fenômeno individual que se recai unicamente sobre os únicos dois seguidores do demônio que nos são apresentados, enquanto MaXXXine denota como a manipulação da opinião pública por narrativas orquestradas por células fundamentalistas é recorrente.
De forma similar, outro filme de terror que assisti recentemente foi Sorria, lançado em 2022 e estreia de direção de Parker Finn. Apesar de em primeira análise se aproximar do camp e do trash, é um terror bastante responsável e muito bem executado, principalmente na sua mensagem do que seria o horror. O terror da nossa protagonista não é a loucura e suas alucinações, não são os loucos, mas sim a percepção externa a que essas pessoas são recebidas. Rose dedica sua vida a ajudar profissionalmente pessoas mentalmente instáveis, porque ela mesma foi testemunha de um evento traumático em sua infância envolvendo a própria mãe, que também precisava de ajuda especializada. Enquanto podemos ver o tato e o carinho de Rose com a saúde mental dos seus pacientes, a maior parte das outras personagens do longa desumanizam o que chamam de loucura e, com isso, a desumanizam no processo. Por isso, quando passa a ter alucinações e paranoia, Rose se sente sozinha. Ela sabe o que é ser invalidada, ela sentiu a invalidação alheia e sabe que virá para ela também. Argumentaria que o horror de Sorria é, numa medida de interpretação, antimanicomial, por conta de sua execução bem realizada da narrativa, propondo uma personagem emocionalmente complexa e um horror que vai além do medo do desconhecido.
O que só acentua as diferenças do protagonismo de Rose em relação à protagonista de Longlegs. A agente Lee Harker, do FBI, também é acometida pela sensação de loucura, acompanhada de alucinações e desorientação, mas ela parece não ter nada a perder. Harker é uma protagonista sem história, sem vínculos, exceto se considerar a sua relação com seus superiores no trabalho e o distanciamento com sua mãe. Harker estar se sentindo louca não influencia em nada sua vida, que já é narrativamente vazia. Uma protagonista sem vontades, utilizada exclusivamente como peça para transcorrer o mistério e suspense do filme. Ainda assim, meu maior incômodo reside no final, quando nossa corajosa oficial de segurança pública consegue salvar uma criancinha indefesa dos caminhos do Diabo que estava transformando sua família. Ela, completamente em silêncio, segura uma criança em seus braços, tão despropositada como nos foi apresentada no começo do filme, mas aparentemente salvando uma criança de passar pelo mesmo destino de que ela foi salva.
Por essas razões, defendo que a trama de Longlegs é horrivelmente datada. Seu plot twist, além de óbvio, é pouco senão nada envolvente, e todo o terror do filme é baseado em um suspense que nunca é narrativamente recompensado. Mesmo reconhecendo as qualidades de sua fotografia, o filme só é capaz de se sustentar se você acompanhar sua narrativa visual a um nível tão superficial que seria possível continuar sentindo medo do Diabo e do Outro depois da morte totalmente anticlimática do antagonista principal de Nicholas Cage. Com todas essas considerações, me impressiona pensar que esse filme ainda teve uma recepção pública bastante respeitável. Seria simplesmente pela qualidade da divulgação que ele teve antes de seu lançamento? Ou, seguindo a opção mais sinistra, as pessoas não se importam com histórias coerentes e só buscam continuar tendo medo de monstros debaixo da cama? Esse filme é propaganda de uma visão de mundo particular, um mundo em que continuamos a ter medo de homens de aparência estranha e que precisamos estar alerta para a ameaça do Diabo enquanto ele tenta se infiltrar em nossas famílias. E, enquanto nos deslumbrarmos com narrativas assim, nunca vamos testemunhar o verdadeiro horror que está ao nosso lado.