Esquenta-coração / Carta à Joan Didion

Filipe Narciso
9 min readJul 31, 2024

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Esse mês, visitei a 25 de março pela primeira vez. Acompanhado de minha mãe, que está me visitando em São Paulo por uns dias, descemos na estação São Bento do metrô e, antes mesmo de chegarmos na rua, já estávamos dentro do complexo comercial de barraquinhas, panos, brinquedos e bugigangas amontoadas da 25. Logo no primeiro estabelecimento que entramos, vejo diversas garrafas térmicas digitais com uma mensagem logo abaixo:

“GARRAFA DIGITAL R$19,99. Obs: alguns produtos com defeito”

Dou uma risadinha desrespeitosa e aponto a mensagem para minha mãe. Saímos da loja e fico com as garrafas de Schrodinger na cabeça. Pessoas e pessoas e mais pessoas nos cruzam, entramos em outra loja, decido abrir o bloco de notas do celular. O aplicativo ainda está aberto numa pequena anotação que fiz no dia anterior:

Esquenta-coração: um casaco de lã, sem mangas.

Na tarde anterior, enquanto minha mãe olhava roupas em uma loja de departamento, ela pegou um casaquinho de uma arara e disse “sua vó adorava esse tipo de coletinho, ela os chamava de esquenta-coração”.

A cada loja que entramos da movimentada 25, puxo meu celular e anoto algo novo que gostaria de não esquecer, pequenos recortes do cotidiano que quero ser capaz de compilar e regurgitar em algo lindo. Saindo de um estabelecimento que tinha um cheiro intenso e invasivo de perfume doce, um odor igualmente nauseante de omelete com queijo demais chega até mim assim que pisamos na rua de novo. É pouco depois das duas da tarde e vozes contratadas por toda a parte gritam a palavra ALMOÇO para divulgar restaurantes na região. Sinto uma vontade irresistível de gritar ALMOÇO também, só para fazer parte daquilo, como uma criança quando decide imitar o que os adultos fazem.

Como argumenta uma grande amiga, comprar livros e ler livros são hobbies diferentes. Usando o mesmo princípio, gostaria de defender que pensar em escrever e ativamente escrever são hobbies diferentes. Melhor ainda, talvez nem hobbies sejam. Atividade? Necessidade? Vontade? Ação inconsciente? Tudo ao mesmo tempo, gritando? É o que sinto naquele ambiente, uma quantidade inconcebível e incontrolável de informações o tempo todo, uma mistura de sons, cheiros, imagens, texturas, movimentos, sabores e cores em que nada permanece, tudo se intercambia, batalhando até a morte por sua atenção. De certa forma, é como acessar a internet.

A cada passo que dou, há um novo ambulante que não posso fazer contato visual. A cada loja que entramos, a trilha sonora de Imagine Dragons é constante, assim como a mensagem atrás dos caixas dizendo “O cliente sempre está com razão, exceto quando perde a educação”. Um estralo alto e chispado de uma taser corta a tranquilidade falante da rua. Um som violento, assustador. Perto de mim, um homem atrás de uma mesinha para amostragem de produtos segura a arma de choque na mão e se põem a gritar:

— ESPANTA TARADO, ESPANTA LADRÃO, ESPANTA HOMOFÓBICO

Sorrio. É algo bonito de escutar.

Como eu e minha mãe não íamos comprar muitas coisas, não demoramos a fazer o caminho de volta para o metrô. Enquanto subimos a rua, reparo em mesinhas vazias, vejo alguém jogar todos os óculos que está vendendo dentro de uma sacola preta. É nesse momento que escuto, vindo do alto daquela mesma rua, uma voz masculina gritar “tá vindo, truta”.

Quando chegamos na estação, os ambulantes já estavam colocando suas mercadorias sobre os tecidos de novo.

Poucos dias depois desse passeio pelo centro comercial de São Paulo, decidi ler “Noites Azuis”, da jornalista e escritora Joan Didion. Desde as primeiras páginas, havia algo naquela escrita, na forma como as informações eram descritas, como tudo era apresentado, que me deixava inquieto. Lia os relatos daquela senhora e sentia que me confessava aquela história, que era possível conversar com ela. Que podia a endereçar diretamente e que isso era algo que eu queria, porque desde o princípio quis a contestar.

E é assim que, como se você estivesse me antecipando, como se sabendo que eu viria, que a questionaria, no começo do décimo quinto capítulo, você fica defensiva. Afirma que alguns de nós, leitores, diriam que sua filha é alguém privilegiada, escrevendo que:

“Privilégio” é outra coisa.

“Privilégio” é um julgamento.

“Privilégio” é uma opinião.

“Privilégio” é uma acusação.

“Privilégio” continua sendo algo que, quando penso naquilo que ela teve que suportar, quando considero o que veio depois, não vou admitir abertamente.”

Não a culpo, você é mãe. Não apenas uma mãe, mas uma mãe enlutada. Uma mulher próxima ao fim de sua vida, uma escritora que escreve esse livro que compila diferentes histórias já finalizadas, incluindo a de sua própria filha.

Acontece, Didion, que apesar de ver sua filha como privilegiada, meu julgamento nunca se recai sobre ela, mas sim sobre você e sobre o que você escolhe escrever, como escolhe escrever. Ao construir Quintana como personagem, ao descrevê-la, você diz que ela sempre reconheceu uma das casas em que vocês moraram como “esnobe”. Enquanto você descreve situações de extrema opulência como um mero capricho, detalhes de uma vida pacata, como o casamento de Tasha com o ator Liam Neeson nas primeiras páginas do livro, quando decide defender que a morte não pode estar acontecendo a ela, me pergunto se você diz que não poderia estar acontecendo a ela somente por ela ser uma boa pessoa ou se também escolhe o pontuar por ela ter todo o apoio médico que o dinheiro pode pagar. Você apresenta a dezena de médicos contratados, no caríssimo sistema médico estadunidense, como uma série de incompetentes, apontando a medicina como coisa falha, ciência imperfeita. Apesar disso, consigo entender de onde seu discurso provém: a medicina, um desdobramento do poder aquisitivo, não foi capaz de salvar Tasha, assim como não salvou outros grandes nomes de atores, advogados, socialites mencionados. Assim como não foi capaz de salvar Quintana. Assim como não é capaz de a salvar da senilidade, podendo apenas oferecer formas de adiar seu avanço.

Diferentemente de um julgamento moral sobre Quintana, demônio para o qual você já tinha se preparado para enfrentar, é à sua escrita que me refiro como crítica. É o retrato da opulência como uma banalidade cotidiana que assusta, que afasta, que me atesta ou ignorância ou frivolidade. Os detalhes floreados de sua vida dispersam minha atenção, principalmente pela forma como me são apresentados. Você constantemente aborda coisas que vê, mas não percebe, ou que se recusa a reconhecer, em sua filha, mas faz questão de não a reconhecer como privilegiada. A consequência lógica de não a reconhecer como privilegiada, de não permitir esse julgamento para alguém que viveu com você, esteve nos mesmos lugares que você, alguém que morou nas mesmas casas que você e definiu uma delas como “esnobe”, é simples: você não se reconhece como privilegiada. Seja pela dor da perda de sua filha, seja pela percepção de bondade e compaixão dos outros ricos com quem dividiu sua vida, seja pela ignorância inerente à afluência, isso permanece desconhecido para si mesma. Quando leio, penso em uma curadoria, como em um museu. Escrever é uma curadoria inconsciente, consciente, constante, específica de informações. O que você escolhe escrever reforça o que você escolhe não escrever. Você utiliza imóveis, roupas, viagens, bens para construir diferentes imagens moldáveis, moldadas por você, de sua filha Quintana. Em partes, faz sentido: vários desses objetos puderam ser pegos e tateados por você enquanto escrevia esse livro. Mas o que vejo, para muito além de sua filha, é um apreço enorme pelo luxo e a seguridade que ele a traz. Em certa passagem, revendo fotos da infância de Quintana, você diz se lembrar de uma série de detalhes concretos, físicos, desde o lugar em que moravam até a roupa que ela vestia, mas que não recordava das mudanças de expressão em seu rosto. Não me admira.

Há beleza no que você diz. Chorei com seu livro, chorei com a relação de vocês. Pensei em minha própria escrita, pensei na relação com minha mãe, pensei em como é difícil se ver responsável por uma vida, pensei em como é difícil se reconhecer como filho de alguém. Mas sou incapaz de ignorar o elefante na sala, a coisa que você fala de soslaio, que usa como ambientação, que a serve como um mero afresco, que a isola em outro mundo, que você ativamente evita reconhecer como relevante. Aquilo que à sua filha sempre foi uma obviedade e, para você, algo tão difícil de se encarar de frente. Existem dores específicas em crescer, amadurecer em uma “posição privilegiada”? Você argumenta que sim. E estou de acordo: há pressões, há cobranças, há expectativas específicas. Nesse sentido, compreendo Quintana como ninguém.

Mas, principalmente, ler Noites Azuis reforçou um forte desconforto que tem me acompanhado durante todo esse mês, Didion. O medo de que, por constantemente escrever sobre minha vida, talvez eu não a esteja vivendo realmente, só criando ficções para mim mesmo, me enganando com frequência, como você reconhece fazer, mas que nunca consegue ver as mesmas mentiras que eu vejo. Sinto que você se engana em toda a duração do livro, mesmo quando reconhece suas contradições, mesmo quando se mostra imperfeita, uma narradora não confiável, quando se coloca como uma senhora talvez já senil demais. Você ainda não reconhece, ou escolhe não reconhecer, a mentira fundamental do “privilégio” que tanto a assombra. Apesar de minha crítica, assim como você, como Fukase, tenho medo de que também exista algo que eu não consiga enxergar no que escrevo e que eu não possa sentir no que vivo. Que existe algo que eu esteja perdendo de vista, todos os dias, coisa que não vai retornar, que não consigo eternizar.

Descanse em paz, Didion. Apesar de minha crítica, agradeço pela leitura e lamento pela dor que teve de carregar.

Em meio ao meu vício recentemente adquirido, ou recentemente explicitado, de ficcionalizar a minha vida, fui a uma dentista nova esse mês. Desde a remoção dos meus sisos, não tinha feito uma limpeza bucal. Quando a vi a primeira vez, sentado no consultório esperando que me chamasse, pensei de imediato em uma descrição de quem ela poderia ser

Era uma mulher de beleza maligna. Tinha uma maldade linda no olhar, hipnotizante.

Dessas duas frases que me apareceram, construí uma personagem: uma dentista profissional e competente, doce com crianças e simpática com as mulheres, mas que gostava de fazer homens chorarem. Era propositalmente mais agressiva, mais cruel ao cuidar da boca de pacientes homens. Gostava da ideia da inversão da violência, como se ela pudesse fazer com que pagassem, ao menos um pouco, pelo sofrimento a que todos nós somos submetidos. Sabia que gostaria de escrever sobre ela, essa espécie de justiceira da higiene bucal, queria saber como seria estar sob os cuidados dessa mulher, sendo um homem.

Por essa razão, durante o meu tratamento, sinto o ímpeto de tentar dizer, como fosse possível com um tubo dentro da minha boca, “com licença, você se incomodaria se eu pegasse meu celular só para poder escrever algumas coisas?”. Claro, não o faço, então muito do que pensei naquele momento se perdeu. Mas a ideia de escrever me mantém o mais próximo e o mais afastado o possível dali, da dor e do desconforto que deveria estar sentindo. Me aterrissa e me faz sentir cada detalhe, para ver se consigo encontrar uma beleza concreta ou irreal, ao mesmo tempo que me transcende e me torno só a expectativa da descrição que virá, ou não, a ser depois.

Assim que a limpeza estava finalizada, ela me explica que eu talvez sentisse incômodo em minhas gengivas, que deveriam ficar vermelhas por poucos dias, devido ao tártaro, mas que ela poderia me passar um medicamento antibiótico para ajudar. Me explicou, com muita clareza e educação, que não poderia usá-lo por mais de 7 dias, porque senão o composto iria manchar meus dentes. Nunca comprei a medicação, mas gostei de a ouvir explicando detalhadamente como funcionava. Senti que era respeitado e a considerei uma boa profissional. Foi nesse momento também que pude analisar com mais atenção os seus olhos. Não vi ali nenhuma maldade, nada que indicasse um impulso de prazer em fazer homens adultos chorarem.

Mas eu chorei um pouquinho.

Como essa edição está mais longa do que o normal, não irei me estender tanto em minhas recomendações para o mês. A primeira delas é uma reportagem de Tatiana Merlino para o projeto jornalístico focado em alimentação O Joio e o Trigo, uma das minhas fontes de informação favoritas. Merlino investigou as condições trabalhistas dos profissionais da rede de mini mercados OXXO, que ultimamente tem dominado o desenvolvimento urbano, ao menos paulista. OXXOs estão por toda parte, próximos de todos os lugares, se multiplicam para cima e para baixo e isso sempre me pareceu estranho, ainda mais por diversos desses estabelecimentos serem 24h. Merlino compila diversas entrevistas de funcionários e ex-funcionários da rede para expor suas condições degradantes de trabalho e exploração por parte da rede de mini mercados.

Minha segunda e última recomendação do mês é o texto de Michelle Dean sobre a covardia e o legado da autora Alice Munro. Munro, vencedora do Nobel de literatura, traiu a confiança de sua filha que admitiu ser abusada pelo padrasto, que não apenas não negou o abuso, mas o confirmou. Após se separar do homem por um curto período de tempo, Munro voltou para ele pois “o amava demais” e não foi capaz de estar ao lado de sua filha, que até o dia da morte da mãe teve uma terrível relação com ela e o resto da família. Dean, ao comentar sobre Munro, fala sobre como a violência silêncio familiar é algo prevalente em famílias convencionais, em que o equilíbrio se sobrepõem à justiça e à segurança. Vítimas de abuso constantemente são ignoradas por familiares e pessoas amadas em nome da manutenção de vínculos.

Esse texto é a 23° edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”. Você pode assiná-la pelo link: https://filipenarciso.substack.com/

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