Efeito borboleta
Em 2020, eu escrevi um texto que acabou me custando tudo da minha nova vida.
Recém chegado à vida adulta, à faculdade, a São Paulo, eu tinha acabado de fazer 18 anos e buscava construir um novo mundo pra mim. Longe de casa, sem a supervisão de meus pais, fora do interior tão homofóbico e conservador que era tudo que conhecia. À época, ninguém esperava que uma pandemia mudaria tudo para o pequeno espaço do lar e das telas de computadores. Assim, preso em casa, assistia minhas aulas, desenvolvia as amizades que conheci nos primeiros dias das aulas presenciais, me dedicava a estudar mais e me permitia escrever. Até que, com apenas uma série de parágrafos, eu perdi oportunidades de emprego, boas relações acadêmicas, amizades que pensei que durariam por muitos e muitos anos e até mesmo o rapaz que era meu melhor amigo e pensava ser o amor da minha vida.
Estive pensando em como contar essa história. Estive sob um forte ímpeto de recontar tudo uma última vez, escrevê-la e publicá-la para estar sempre ali. Fechar esse ciclo, finalmente. Expor minha versão dos eventos, minha narrativa de como me tornei adulto, do meu ritual de iniciação, da solidão, da impotência, da sensação de abandono. Estou ciente de que, como toda narrativa, ela é um campo de batalha de interpretações e perspectivas. Sei muito bem a minha, mas também sei que possuo meus defeitos, minhas peculiaridades.
Naquele ano, a transição para o digital foi conturbada. As atividades presenciais que foram traduzidas no cibernético tinham um estranhamento, eram todas tingidas de despreparo. As aulas eram pouco interativas, caóticas, distantes. Nada parecia estar ali de verdade. Desse vácuo de conexões, de ligações com o mundo, nasceu a oportunidade de fazer parte de uma instituição que me permitiria escrever sobre o que eu quisesse. Era tudo o que sempre quis. Talvez, ainda seja tudo que quero: poder escrever livremente, tentar traduzir minhas ideias em palavras, destrinchar e detalhar minhas paixões.
Eu fiquei deslumbrado, adorava fazer parte daquilo. Logo na minha primeira reportagem, tive uma das experiências mais bonitas que pude ter como jornalista. Estava escrevendo sobre o novo Animal Crossing, jogo símbolo do começo da pandemia. Ele era escapismo puro: você podia se teletransportar para um mundo fofinho onde animais eram seus vizinhos e nada de errado estava acontecendo. Entre meus entrevistados, conversei com Francielle, que além da pandemia, também estava em tratamento de um câncer. Pedi para ela que, se possível, respondesse às minhas perguntas por áudio. Ela aceitou. Assim que a enviei as perguntas, ela não me respondeu. Algum canto de mim pode ter temido pelo pior, mas na verdade achava que ela só tinha esquecido, algo que outros entrevistados já tinham feito. No dia seguinte, recebi um áudio de Francielle em que ela, com uma voz calma e soando um pouco entorpecida, me pedia desculpas e explicava que não havia me respondido porque havia se sentido mal na noite anterior e decidiu ir ao hospital, onde acabou sendo internada, mas que agora estava se sentindo melhor e que ia me responder. Disse à ela, o mais rápido que pude, que estava tudo bem, não precisava me responder, sua saúde devia vir em primeiro lugar. Ela insistiu e me explicou exatamente porque aquele jogo fazia tanta diferença para ela. Chorei aquele dia por conta de seu compromisso comigo, sua confiança em mim, um estudante de jornalismo de 18 anos em seu primeiro semestre, um desconhecido escrevendo sua primeira reportagem, que gostaria de contar um pouco da história dela a partir da sua relação com aquele jogo.
Nunca joguei Animal Crossing, eu apenas tinha vontade de poder jogar e sabia que era o jogo do momento. Para minha segunda reportagem, decidi falar sobre algo que realmente era do meu universo. Algo que eu já havia pesquisado, lido, assistido, participado, visto de perto suas dinâmicas e seus acontecimentos, algo que me envolvia, me rodeava, era parte da minha história, minha identidade, meu senso de comunidade e que era também das histórias mais fascinantes e bizarras para mim sobre como a internet e comunidades funcionam. Eu decidi falar sobre o Loona e sobre ser Orbit.
Foi torturante tornar essa reportagem realidade. Não sabia quem entrevistar, não sabia que abordagem tomar, não sabia como fazer jus ao meu grupo favorito de todos os tempos, não achava que eu seria capaz. Mas, a entreguei, dando o melhor que podia oferecer. Para conseguir tornar o texto realidade, decidi fazer uma entrevista em inglês com uma jornalista estadunidense de cultura pop que também tinha escrito sobre o grupo. Assim como eu, ela também gostava de k-pop e também era orbit. Foi das minhas entrevistas favoritas até hoje, mesmo estando com medo, me senti tão à vontade com ela, compartilhando nossa paixão.
O problema com essa reportagem só foi aparecer muitos meses depois. Por conta de atrasos da editoria, deixaram para publicar minha reportagem no final do ano, quando o Loona já estava com um novo comeback marcado. Como meu texto tinha uma característica de linha do tempo, ele estaria desatualizado. Pedi para atualizá-lo e me permitiram desde que seguisse uma série de regras que me tiravam completamente a autonomia sobre o que escreveria. Recusei, disse que não queria publicá-lo.
Não fazia ideia que isso me faria ser mal visto pelo topo da hierarquia da entidade universitária que fazia parte. Mesmo se soubesse, ainda acho que em todo e qualquer universo eu decidiria não publicá-lo. Mas eu adorava fazer parte daquilo. Era ali que me aproximei dos meus amigos, que pude conhecer meu melhor amigo, que tinha um contato semanal com diferentes pessoas da minha idade em uma época em que não podia ver ninguém exceto meus familiares.
Com o fim do ano, iniciou-se o processo para escolher quem continuaria fazendo parte da equipe no próximo ano. Participei, confiante de que continuaria. Afinal, dentre a mais de uma dezena de cargos possíveis, eu só via dois como opções que eu nunca aceitaria, e assim o disse desde a primeira das várias etapas. No último dia, me ofereceram exclusivamente os cargos que não aceitaria. Não aceitei.
A vida não é justa, claro, mas sempre esperamos que seja. Ninguém entra em um jogo para perder. Imaginamos que estruturas tenham alguma legitimidade. Imaginamos que não prejudicar os outros vai nos proteger de sermos prejudicados. Eu chorava. De raiva, de tristeza, de medo do que estava por vir. Minha mãe me observava, tentava me acalmar. Eu rangia meus dentes e falava sobre como não era justo. Até que ela desabou. Com lágrimas em seus olhos e a voz embargada, disse para mim sobre como era difícil para ela, como mãe, me ver numa situação como aquela, que temia o que significaria pra mim. Nesse momento, eu me acalmei. Parei de chorar e decidi deixar o que sentia de lado. Tá tudo bem, mãe, eu vou dar um jeito.
Foi assim que eu me lembrei de um e-mail que havia recebido nos últimos dias. Um aviso sobre uma oportunidade de estágio para o escritório internacional da universidade. Eu nunca tinha me candidatado a uma vaga, nunca tinha feito um currículo, não tinha um portfólio. O processo seletivo estava prestes a fechar. Eu queria aquilo, queria provar a mim mesmo, aos outros, a quem quer que se colocasse na minha frente, que eu conseguiria qualquer coisa que fosse meu objetivo. Em uma tarde, organizei todos os meus textos em um portfólio e na mesma noite comecei a organizar um currículo. Pedi ajuda a conhecidos, em especial a uma aquariana muito importante para mim que conheci por minha irmã, e pude organizar uma versão geral e uma adaptada para aquela vaga. A grande diferença entre elas? Na versão adaptada, eu especificava que havia feito uma entrevista em inglês para uma reportagem.
Após avaliarem meu currículo, passei da primeira etapa. Para a segunda, precisava escrever um material de divulgação, nada muito complexo. Na última etapa, precisei fazer uma entrevista por vídeo chamada. Em uma sala com três outras pessoas da agência, eu me sentia simultaneamente ansioso e despreocupado. Não sei explicar como tudo funciona pra mim, mas só me sinto ansioso enquanto as coisas ainda não aconteceram. No momento, me entrego, já não há mais nada que possa ser feito. Conversamos, falei sobre minhas habilidades, até o momento em que a vice-presidente me pediu para falar um pouco mais sobre minha experiência com a entrevista em inglês. Um sorriso ainda maior dominou meu rosto. Claro, posso contar mais.
Fui contratado. Depois da euforia inicial, uma felicidade melancólica tomou conta de mim. E agora? Eu consegui o que eu queria, mas isso não mudava o que eu não tinha conseguido. Não mudava que meus amigos pareciam mais distantes a cada dia, não mudava que o rapaz que eu namorava parecia se importar mais com a entidade universitária do que comigo. Eu sempre soube que era algo muito importante para ele e por isso tinha medo de que aquilo nos afastaria. Agora era o começo de 2021, a pandemia não só não havia acabado como sequer parecia próxima de chegar ao fim. O trabalho era ótimo, tinha a tranquilidade, a autonomia e o reconhecimento que eu gostaria, mas preso em casa, em contato apenas com meu supervisor por e-mails ou uma vídeo chamada de vez em quando, eu me sentia sozinho. Os dias passavam e nada acontecia. Me sentia cada vez mais longe.
Eu estava determinado a não terminar. Ele era meu melhor amigo e eu queria muito fazer as coisas darem certo. Mas já fazia semanas que ele não arranjava um tempo para nós dois. Duas vezes diferentes em que descobri que ele se reunia com seus amigos sem me avisar. Escrevia textos no meu bloco de notas. Reclamações, mensagens de término, desistia, precisava fazer dar certo. Quando me assumi para meus pais a primeira vez, eu só tinha seis anos de idade. Sinto que nunca tive infância por conta dos eventos desse dia. Cresci pensando que, se algum dia eu poderia encontrar paz, seria através do amor romântico, seria com um rapaz ao meu lado dedicado a me manter seguro assim como eu me dedicaria a ele. Até que, uma semana depois do dia dos namorados, ele terminou comigo. Depois de tanto manter minhas reclamações pra mim, de tanto tentar não sentir ciúmes ou inveja, de tanto me sentir horrível por pensar em terminar, ele tomou a decisão por mim. Eu já não fazia mais parte de seus planos. Eu havia me tornado um incômodo. Eu era algo que demandava tempo e atenção, que ele não tinha. Tempo e atenção que ele tinha se programado para oferecer para outras partes da vida dele. Tempo e atenção que ele gostaria de dedicar a ter uma rede de conhecidos e amigos, para que ele não ficasse sozinho. Eu não tinha conhecidos e amigos para oferecer, pois tinha me afastado de todos que eram do nosso círculo. Logo, eu não tinha o que oferecer.
2021 inteiro foi uma tentativa falha de fugir da solidão. Tentei não terminar e falhei. Tentei manter meus amigos e falhei. Tentei fazer novos amigos e falhei. Não podia sair, não podia fugir da minha casa, não podia voltar a São Paulo, não podia estar em uma sala de aula. Perdi a capacidade de escrever. Perdi o prazer por escrever. Passei o ano todo, praticamente, sem conseguir sentir vontade genuína de escrever algo. Sentia que minhas palavras eram criaturas impossíveis, que me afastavam dos outros, que me comunicava de formas incompreensíveis, inúteis.
Apenas não desisti da minha graduação porque adorava meu estágio. Com a renovação do meu contrato no ano seguinte, pude ter a experiência de trabalhar presencialmente, de ter aulas presenciais, de conhecer novas pessoas, de conhecer São Paulo. Foi conturbado, mas foi lindo. Agora, quatro anos depois, estou prestes a me formar e nada é como eu imaginei que seria, mas me sinto tão feliz que assim o seja. Essa não é uma história de superação. Não me orgulho de diversas atitudes que tomei, mesmo estando disposto a fazer tudo exatamente da mesma forma. Foram dias e dias intermináveis de um ano horrível. Sentia que eu estava cada vez mais próximo de sumir, de inexistir para os outros e para mim. Ainda sinto, olhando de volta, o desespero do vazio daquela época. A sensação de nada, de tudo que foi se esvaindo, sumindo, incapazes de serem recuperadas. Todos os dias, vivendo no mesmo nada.
Às vezes, tenho vergonha da minha escrita e do que escolho escrever. Constantemente tenho vergonha dos meus sentimentos, de como as coisas me atravessam, de como tudo me move, dramático demais, exagerado demais. Ainda falo sobre isso hoje porque foi traumático para mim. Vez após vez me pego contando essa história novamente para que possam entender meu desencanto com o jornalismo, para que possam entender porque eu não tenho carinho pela minha graduação, para ver se alguém consegue me dizer as palavras certas que vão me fazer entender porque eu tive que passar por isso. Porque, eu, sinceramente, nunca entendi.
Sobre o Loona, atualizando meu texto de quatro anos atrás, o grupo acabou. Não fiquei triste, na verdade torci para o disband acontecer por conta dos abusos da antiga empresa das meninas. Da morte do antigo Loona, suas membros foram livres. Mutilado, o grupo se dividiu: cinco garotas formaram um novo grupo, o Loosemble, outras cinco formaram outro grupo, o Artms, enquanto Chuu e Yves se tornaram solistas. O Artms lançou sua primeira música essa última sexta-feira, Birth (Nascimento), marcando a nascença do grupo e de uma nova era para as meninas do mês. Minha membro favorita do Loona, a Gowon, atual Loosemble, tinha a borboleta como seu animal representativo no grupo original. O primeiro comeback que acompanhei desde a estreia com o Loona se chamava Butterfly (Borboleta). Minha história se entrelaçou com a do grupo de formas que não sou capaz de enfatizar o suficiente, mas me fizeram acreditar que relações parasociais não são apenas sobre ídolos, são sobre nós e nossas histórias, também.