Domingos
Dois acontecimentos principais se entrelaçaram em meu cérebro e me trouxeram ao desafio de escrever essa última edição do ano: o primeiro foi uma música, uma noite de álcool demais que levou a uma manhã vomitando e a uma tarde chorando em uma padaria. O outro foi uma estatística que li: um em cada cinco feminicídios que acontecem no Brasil ocorrem aos domingos.
Quando criança, nunca entendi porque domingo não era primeira-feira. Naquela época, várias coisas envolvendo a não primeira-feira não faziam sentido. Para o primeiro dia da semana, era estranho que ele fosse um dos únicos dois dias presentes no final de semana. Ainda me parece contra-intuitivo e, na verdade, há várias coisas que mesmo depois de adulto não consigo entender. Desde que me mudei para São Paulo, fiquei impressionado ao perceber que quase nada abre aos domingos. É difícil encontrar sequer um restaurante aberto nessa cidade no primeiro/último dia da semana.
No final do mês passado, por coincidência percebi que o ano terminaria no dia mais excêntrico da semana pra mim. O dia depois do sábado a noite e o dia antes da segunda-feira de manhã. Um espaço intermediário, sem ser exatamente nem um nem outro, habitante de uma categoria própria. Após ter a revelação assustadora de que o único dia da semana direcionado exclusivamente a ser dia de descanso é, na verdade, um dia de violência, foi quando eu tive a estranha realização de que, esse ano, todos os dias foram domingo pra mim.
Quando digo que todos os dias foram domingo para mim, digo que não trabalhei. Trabalho intelectual é uma atividade severamente ociosa. Pedi para meus mecenas contemporâneos (meus pais) que pudessem me financiar para que eu fizesse com zelo e carinho minhas atividades intelectuais. Apesar de todo o afeto, ainda me sinto um pequeno parasita devorando os recursos batalhados por eles para viver uma vida talvez excessivamente confortável.
Porque esse ano eu vivi de um jeito diferente. Eu finalmente superei uma série de receios e medos de socialização e me aventurei por São Paulo. Experimentei coisas novas, conheci lugares novos, bebi em quantias respeitáveis, conheci mais e mais e mais pessoas. Que seja o Diabo, que seja hedonismo, que seja divertido.
Pela primeira vez, me senti despreocupado quanto a ser o melhor que eu poderia ser e silenciei em mim a ideia de que poderia ser “melhor do que isso”. Finalmente respeitando meu corpo, minhas vontades, meus impulsos. O problema é que o trauma continua lá, algumas coisas permanecem a espreita, e se entorpecer por si só não é nenhuma solução final. Alguns dias cheguei em casa e chorei de soluçar, seja por rejeição, seja por motivos que não sou capaz de explicar. Vez ou outra essa autodestruição, esse vazio, essa memória de dor, retornavam para me reprimir. Como se a despreocupação de finalmente viver o corpo, ao invés de sempre me forçar a atingir a ideia, me deixava vulnerável para finalmente ser atacado pelas conclusões que me apavoravam. De que eu era, sim, irresponsável, não confiável, carente.
Assim eu passei o último ano, tendo o que considero um dos anos mais tranquilos, relaxados e felizes da minha vida, mas perseguido de perto por uma verdade dolorosa. Quanto mais eu me entorpecia, mais impossível ficava ignorar sua existência. A diversão parecia sempre tentar mascarar, esconder de mim a percepção de que eu sou um corpo minoritário, de que eu tenho uma história de violências, de que eu vivi a maior parte da minha existência sentindo que não chegaria aos 20 anos.
Sobre os dados de feminicídio, a violência contra a mulher é concentrada em fins de semana porque, geralmente, vem de um parceiro. Com mais tempo livre aos finais de semana, especialmente no domingo, a maioria dos assassinatos acontecem em casa quando um casal está junto. De festas à encontros à cervejas do fim de semana, eles dedicam aquele momento um ao outro. E nesse quadro entra a violência patriarcal, em uma violação máxima do corpo. As ruas vazias, as lojas fechadas, não existe lazer.
Para além da tragédia e do horror, penso nessas mulheres também porque não vejo as festas de fim de ano acontecendo sem suas presenças. Essas datas comemorativas, os almoços de domingo, são comumente um dever feminino. Domingo continua sendo um dia de trabalho. Feriados continuam sendo dias de trabalho. É um privilégio poder pensar nesses dias como um dia de descanso desde criança. Para muitas, domingo é dia de trabalho e é dia de violência. Para mim e para tantas outras pessoas queer, as festas de fim de ano são dias de violência. Torço pelo dia em que eu possa pensar nas festas de fim de ano e não sentir medo e desconforto por ser gay, assim como torço por algum dia poder ver novamente domingos como dias de descanso e não de feminicídio.
Para fechar essa edição, gostaria de deixar um agradecimento a você, leitor dessa edição e de qualquer outra que eu tenha feito. E também um agradecimento especial a todas as pessoas que me amaram esse ano e que me ajudaram a continuar. Às que me viram chorar, às que me fizeram mudar de ideia, às que falaram comigo quando eu já não estava mais ali, às que acreditaram e ainda acreditam que tenho algo a dizer.
Minha lista recomendações de ano novo na verdade começa com um retorno ao passado. No começo do mês vi esse texto sobre cápsulas do tempo soviéticas que foram reabertas em 2017 com os 100 anos da Revolução Russa e fiquei fascinado com a dinâmica entre o passado de uma ideia de nação e modelo econômico colapsados e o mundo contemporâneo. Desejos de frear o avanço nuclear, explorar o espaço, um futuro melhor, e a certeza de que comunismo seguiria triunfante marcam um momento cultural de esperanças por reconstrução. O futuro que eles sonhavam não se assemelha em nada ao hoje.
Esse mês tive uma terrível decepção envolvendo um criador de conteúdo que gostava bastante e que, inclusive, cheguei a recomendar seu conteúdo em minha newsletter. No começo do mês, um Youtuber chamado HBomberGuy publicou um vídeo sobre a tendência de certos ensaístas do Youtube plagiarem conteúdos. Dentre as pessoas que ele denunciou, um dos principais nomes foi o do James Somerton, que tinha o canal do Youtube destinado primariamente a conteúdo de ensaios sobre temas queer e LGBTQIA+ em geral. Somerton, de acordo com HBomberGuy e outros criadores que decidiram abrir o jogo após o vídeo, plagiava conteúdo de ensaios e produções de outras pessoas queer, muitas vezes trans e pessoas não-brancas, e assim era capaz de publicar um vídeo-ensaio longo por mês, em média, sobre algum conteúdo pertinente. Não vou recomendar o vídeo que mencionei porque ele tem uma duração de quase 4 horas, mas recomendo no lugar o conteúdo de outro Youtuber chamado Todd in the Shadows que analisa os momentos em que Somerton inventa mentiras no meio de seus plágios para defender coisas que ele não comprova em nenhum momento. É um vídeo sobre fact checking e consumo crítico de conteúdos, especialmente naqueles que são obviamente embasados em bons conteúdos, mas são marcados por exageros e autoinserções de interpretações errôneas. Interessante, no entanto, perceber que o primeiro comentário na caixa de comentários é do próprio Todd afirmando que realizou uma inferência errônea no vídeo e que, por conta de como o YouTube funciona, ele não seria capaz de corrigir.
Esse mês também li um texto excelente sobre museus, arquivos, documentação histórica e seus desafios de enviesamento. Kaiti Hannah e Elizabeth Scott, curadoras do museu canadense Western Development Museum, escreveram o artigo após tentarem preparar uma curadoria especial em comemoração ao dia dos canhotos, celebrado internacionalmente dia 13 de agosto. Entretanto, as curadoras não foram capazes de encontrar nenhum artefato em seu acervo que fossem direcionado a pessoas canhotas. Dessa forma, elas escreveram esse artigo para pontuar como a ausência dessa representação, da presença de itens históricos direcionados a população canhota, não implica que essas pessoas não existiram, mas sim que por questões de enviesamento envolvido no armazenamento e preservação desses itens, essas pessoas foram de certa forma apagadas da história dentro da realidade daquele museu. Como uma pessoa canhota eu mesmo, me perguntei se eu, minha identidade, quem eu sou, será também apagado da história, por todas as formas que deixo de ser um ser humano universal. Os últimos dois parágrafos do texto me levantaram uma reflexão que sempre considerarei em minhas próximas visitas a museus:
Quando olhamos para o passado, em livros, arquivos, ou museus, devemos nos perguntar quem ou o que está ausente da história. Por que suas vozes e experiências não foram incluídas? Às vezes, é fácil descobrir os motivos e outras vezes é mais complicado.
Então, a próxima vez que você for para um museu, galeria, ou arquivo, se pergunte quem está faltando e porquê. Só porque não existem artefatos canhotos em nossa coleção não quer dizer que pessoas canhotas não existiram no passado, simplesmente quer dizer que existe uma lacuna em nosso acervo. (Tradução minha)
Para finalizar, recomendo a declamação do artista escocês Brian Cox do último poema do poeta palestino Refaat Alareer, assassinado por um bombardeio israelense em 7 de dezembro. A poesia, denominada “If I Must Die”, traduzida por mim como “Se eu devo morrer”, foi escrita em primeiro de novembro de 2023, aproximadamente um mês antes de seu assassinato. A poesia de Alareer trata do horror do genocídio palestino promovido por Israel e a percepção de que sua existência já estava condenada. Apesar dessa visão de sua morte iminente, Alareer direciona suas palavras e seu poema a seu desejo e sua esperança pela libertação do povo palestino. Que seus bens, suas palavras, sua existência possam servir de conforto à mais nova geração de palestinos. Do rio ao mar, a Palestina será livre.
Recomendações
5 mensagens de uma cápsula do tempo soviética de 1967 por Stepan Ivanov
I Fact-Checked The Worst Video Essayist On YouTube por Todd in the Shadows
Preservation Bias in Museums: Left-handers of the Past and Other Collection Conundrums por Kaiti Hannah e Elizabeth Scott
Brian Cox reads IF I MUST DIE, the last poem by Refaat Alareer, killed by an Israeli airstrike por Refaat Alareer, declamado por Brian Cox
Esse texto é a 16° edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”. Você pode assiná-la pelo link: https://filipenarciso.substack.com/