Cordeiro
Um animal frágil. Um balido agudo e ingênuo. Pelos que nunca devem ter se eriçado. Os chifres, muito pequeninos, foram cortados rente à cabeça. Precisa ser dócil. Precisa parecer dócil.
A criatura é criada desde o nascimento para ser sacrificada. Serve a propósitos maiores do que ela. Carrega o mundo em suas costas. Fruto de um ritual que pouco compreende, sem sorte, sem opção. Uma fábula sem ensinamentos, um conto de fadas sem final feliz.
Esperando a hora chegar, a vida segue acontecendo. Os bons momentos se vão. Os maus momentos duram um pouco mais. Não existe apatia, mas também não há felicidade ou melancolia. É um certo vazio, engole a alma e a cospe de volta, amolecida, enfraquecida, corrompida.
Em contato com os outros, observa as lágrimas que escorrem de seus rostos. As palavras bonitas que dizem. Pergunta a si mesmo se aquilo é intimidade, pois não parece certo confiar tanto assim. Um rosto inexpressivo, escondendo o medo de não saber o que fazer, tenta arranjar uma explicação a como se deve responder a uma emoção sincera. Ainda que aparente ser um processo intuitivo, não atinge conclusão. Um breve agradecimento, uma escuta atenta, uma tentativa de afeto. Espera que seja suficiente.
Deve ser um vilão disfarçado. Só pode ser. Não é capaz de entender como tudo funciona. Fecha os olhos e torce para não ser percebido. A pequena etiqueta em sua orelha prova que já está marcado, não tem como fugir. Talvez seja melhor assim. De que valem intenções se tudo o que sobra é a dor causada por suas ações?
Não quer ser sacrificado. É insubordinado demais, solitário demais, canhoto demais, afeminado demais. Pouco importa suas vontades, que parece ter ignorado por todo esse tempo. Simplesmente não parece bom o suficiente para uma oferenda. Na verdade, só quer se divertir um pouco, quer ser livre.
Às vezes, gostaria de ser cordeiro. Desses que nunca estiveram do lado errado da história. Que acreditam que, só por fazerem o que veem como certo, os outros devem algo a eles. Criaturas que nunca foram o Outro. Rasteiros talvez, solitários talvez, cruéis talvez, mas nunca um Outro.
Não, não deve ser. Se assim o fosse, seria mais corajoso.
Para esse mês, recomendo o prefácio do livro Por um Comunismo Transexual do italiano Mário Mieli. A vivência queer e seus movimentos por libertação estão por toda parte da proposta política de Mieli, além de suas diferentes ligações tanto às ideias de Freud quanto, potencialmente, ao Anti-édipo de Deleuze e Guattari, com sua política inerente dos desejos e o poder transformador das conexões. Particularmente, gosto muito da citação que Barilli, autor do prefácio, faz de outro livro de Mieli, em que ele fala sobre a beleza e o prazer de ser uma bicha óbvia, feminina, apesar de tentar ser sufocado pelas massas. Entretanto, esse é meu trecho favorito:
O homossexual evidente, condenado a existir como um não homem, um híbrido fracassado de masculino e feminino, tornou-se revolucionário ao assumir o defeito de sua feminilidade como instrumento de rebelião, descobrindo então quase com espanto que, além da revolta, abria-se o caminho da libertação. Partindo da opressão histórica da homossexualidade e combatendo-a, chegou à conclusão de que não se tratava de conquistar um gueto ou uma fatia de normalidade, mas de uma mudança de perspectiva geral sobre o modo de viver e compreender o Eros e suas múltiplas consequências na realidade.
Recomendo também um escrito feito por mim nesse último mês. Esse texto foi feito para um trabalho da faculdade sobre biografias. A ideia era falar sobre alguém que você admirava ou gostaria de contar a história, mas a primeira pessoa em que pensei eu sequer sabia o nome. Ainda assim, sua existência marcou muito minha vida e decidi escrever sobre essa relação que construí com alguém que me sentia próximo. Nós dois, vindo do mesmo lugar, gays do interior de São Paulo, com histórias muito próximas e diferentes quanto às burocracias e às violências de ser queer numa sociedade cisheteronormativa.
No final desse mês, me apaixonei por uma nova artista pop indie, de certa forma, chamada Chappell Roan. Pra além de boas músicas, eu simplesmente adoro como sua proposta artística é bem drag, exagerada, camp, irreverente, e muito queer. Procurei uma entrevista sua para conhecer melhor a pessoa por trás de um universo tão interessante e, pra além de recomendar e deixar a admiração pelo seu trabalho, decidi recomendar essa entrevista aqui por conta de sua história de altos e baixos e os desafios de se fazer música. Ela iniciou seu projeto de carreira com um contrato com a Atlantic Records, uma das maiores gravadoras do mundo hoje. Depois de ser deixada pela gravadora, ela voltou para o interior dos EUA sem perspectivas de como continuar a viver sua arte. Decidiu retornar para a costa oeste trabalhando em diversos pequenos empregos em busca de uma nova oportunidade. Não gosto de histórias de superação, minha ênfase não é essa, mas sim em todos esses processos de desilusões e transformações e migrações de uma existência que combate à norma. Ela, com uma música sobre ser apaixonada pela vida na costa oeste, foi abandonada e teve de retornar para o interior, simplesmente para tentar mais uma vez arranjar seu espaço naquele local, por mais voraz que seja.
Recomendações
A revolução no corpo por Gianni Barilli
Uma história que gostaria de contar por Filipe Narciso
Chappell Roan on Her Love of Drag Queens and Her Debut Album That ‘Feels Like a Party’ por Ilana Kaplan
Esse texto é a 15° edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”. Você pode assiná-la pelo link: https://tinyletter.com/FilipeNarciso