Coração bom

Filipe Narciso
5 min readJul 31, 2023

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Estou de férias e parece que minhas palavras também. Sem a pressão de produzir, experimento esse ócio nada criativo com certo desprazer. Não por estar sentindo falta da pressão, mas sim porque há tanto que gostaria de expressar.

A última vez que me senti tão sem inspiração assim foi num bizarro período dois anos atrás, em que, por mais que uma série de pensamentos confusos e fervorosos cruzassem minha cabeça constantemente, não via sentido em dar-lhes nome ou forma.

Dessa vez é diferente. Igualmente imerso em mim e distante de todos, não me sinto um refém das condições e dos meus pensamentos. Só sinto uma necessidade momentânea de me ausentar de minha responsabilidade de exposição natural que vem com o ato de escrever.

Durante esses devaneios, me surgiu um questionamento: será que deveria pensar mais em quem lê o que escrevo? Meus pais e minha irmã leem com frequência. Meus amigos, também. Desconhecidos, até onde tenho ciência, não, no máximo umas poucas pessoas que me conhecem mas não tenho intimidade.

Se esse texto fosse escrito em árabe, ele seria lido da direita para a esquerda. Se algum dia ele for traduzido para o árabe, diferentemente do ritmo que faço agora e, infiro eu, outras pessoas farão também, olhares atentos ou cansados ou desinteressados deslizarão da direita para a esquerda, assimilando seus caracteres, significados, símbolos.

No curso de jornalismo muito se fala sobre essa figura do “leitor metafórico”. A pessoa que necessita que todos os vocabulários e informações sejam mastigados, triturados para conseguir digerir a informação que você traz com o mínimo de indigestão o possível. Essa pobreza crítica metafórica, uma completa ausência de autonomia, uma forma de condescendência que se faz por meio de uma negação da condescendência. Na mentira de estar facilitando o seu leitor, você o trata como uma criança sem senso crítico.

Pessoas são impressionantes. Para esse escrito em particular, argumento em um bom sentido. É bom, e esperado, se sentir desafiado por uma informação, perceber estar enganado, realizar um processo dialético de conhecer algo e ser transformado.

Há tantas histórias que poderia contar sobre situações em que perdi o chão no jogo de expectativas que é viver em sociedade. As experiências mais marcantes para mim acontecem quando sou impressionado pela lealdade do afeto. Poucas coisas me deixam tão emotivo quanto alguém que não ouço notícias a muito tempo demonstrar, mesmo que de formas pequenas, que se lembram de mim com carinho.

A verdade é que tenho medo das pessoas que me distancio, por qualquer motivo que seja. Sempre penso que poderia ter feito mais para continuar por perto. Poderia ter oferecido visitar depois da cirurgia. Poderia ter perguntado se estava tudo bem com sua filha, desculpa por não estar lá quando ela nasceu. Poderia ter insistido nas amizades que mudaram minha vida e agora tenho receio de falar que sinto saudades. Tenho medo de que precisavam de alguém. Não de mim, mas de qualquer um, como eu.

Nessa brincadeira de ser uma amálgama de todas essas pessoas, me apego inconscientemente à esperança de que elas talvez não me vejam como uma pessoa tão ruim quanto fui. Uso o pretérito para me convencer da imutabilidade, do caráter profético que esses eventos possuem. Penso em suas histórias e adoraria ouvi-las, algum dia.

Para esse mês, tenho duas recomendações ligadas à medicina e saúde, uma para falar sobre racismo médico e outra sobre capitalismo predatório, em geral, mas com fortes nuances contra liberdade sexual. O primeiro, escrito por Duaa Eldeib, trata da gravidez de mulheres negras e a prevalência de casos de natimortos nessa população em virtude de negligência médica com futuras mães negras. O segundo, reportagem do New York Times traduzida para O Globo, trata sobre os atrasos de em torno de uma década de um remédio promissores contra HIV em decorrência de brechas no sistema de patentes dos Estados Unidos que permitiram à Gilead otimizar seus lucros a custa das pessoas que dependem dessa medicação. A primeira reportagem é bastante emotiva, com entrevistas com mães de natimortos e ativistas pela causa, já a segunda é mais convencional com sua abordagem meramente informacional.

Também recomendo uma reportagem da BBC sobre o genocídio indígena do Canadá. Estive pensando esse último mês na quantidade de pessoas que se consideram progressistas que conheço e que possuem tendência a hipervalorizar lugares como Canadá ou Nova Zelândia como grandes exemplos de civilidade, sendo que esses países são construídos tendo por base a opressão e genocídio de seus povos originários.

Para minhas recomendações em vídeo, tenho uma sobre movimentos de cinema e suas decorrentes transformações nas estruturas narrativas. No vídeo-ensaio Why do movies feel so different now?, Thomas Flight faz uma análise bastante aprofundada e concisa sobre o atual perfil metalinguístico que as produções cinematográficas possuem e como esse fenômeno foi ser gerado. O vídeo foi recomendado pela minha amiga Maê, obrigado por sua presença na minha vida.

Minha próxima recomendação é uma declamação de poema. Triptych de Diana Khoi Nguyen é um poema que trabalha o espaço e a forma deixada pelo irmão da autora nas fotos de família de que ele se recortou anos antes de cometer suicídio. Por conta do poema possuir uma estrutura muito específica, o trabalho realizado pela Ours Poetica de unir o visual com o áudio da declamação faz o vídeo possuir um estilo muito único e comovente.

Para fechar as recomendações do mês, que foram muitas dessa vez, tenho o documentário que produzi esse último semestre com minha amiga Ana Paula. Nosso documentário, USP pra quem? Uma luta por cotas trans e sobrevivência trata de conversar com as pessoas trans que são parte da comunidade USP sobre como é a experiência de ser uma pessoa trans nessa universidade e a importância da implementação de cotas trans.

Recomendações

She Says Doctors Ignored Her Concerns About Her Pregnancy. For Many Black Women, It’s a Familiar Story por Duaa Eldeib

Farmacêutica atrasou remédio promissor contra o HIV para aumentar os lucros, mostram documentos por Rebecca Robbins e Sheryl Gay Stolberg para o New York Times, disponível traduzido em O Globo

A história ‘horrível e chocante’ de 750 túmulos descobertos em escola no Canadá por BBC Brasil, autoria não informada

Why Do Movies Feel So Different Now? por Thomas Flight

Diana Khoi Nguyen reads “Triptych” por Ours Poetica, declamação pela própria Diana Khoi Nguyen

USP pra quem?: Uma luta por cotas trans e sobrevivência por Filipe Albessu Narciso e Ana Paula Alves

Esse texto é a 11° edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”, pela qual você pode assinar através do link: https://tinyletter.com/FilipeNarciso

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