Consentimento

Filipe Narciso
9 min readNov 30, 2024

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Gostaria de deixar um aviso de que essa edição tratará de abuso sexual e violência sexual em geral.

Essa vai ser difícil. Muito difícil. Todos os outros temas de que já escrevi foram coisas que consigo conversar, elaborar com outras pessoas. Esse me assusta de verdade.

Eu não tive aulas de educação sexual. Ou ao menos não me recordo de nada parecido. O mais próximo que tive foi, já adolescente, professores de ciências e, posteriormente, de biologia, nos lembrando de usar camisinhas e anticoncepcionais e explicando como funcionavam as ficções políticas “órgão reprodutor feminino/masculino”. A palavra consentimento é tão estrangeira, distante para mim, que me é comum pensar primeiro na sua contraparte anglófona, consent, antes de chegar à realização de que a versão em português possui algumas letras a mais.

Se você não sofreu abuso sexual, alguma pessoa próxima a você já sofreu. Essa é uma máxima que aprendi há muitos anos atrás. Desde então, ouvi todos os tipos de histórias de tantas pessoas próximas. Pessoas que parecem inatingíveis, pessoas a quem você pensa que ninguém faria ou já fez algum mal, pessoas a quem você imagina que nada de ruim poderia acontecer. Só pessoas, como qualquer outras. Tantas delas, todas elas, uma história, uma marca similar. Às vezes, tenho a impressão de que as únicas de quem não ouvi histórias de abuso ou assédio são aquelas que ainda não tiveram a coragem ou a vontade de as compartilhar comigo.

Se tantas pessoas são vítimas, a implicação lógica é que exista, pelo menos, a mesma quantia de abusadores. Descobrir que alguém é um abusador é um processo não apenas desconfortável, mas quase.. imaterial. Parece que a única forma possível de se compreender essa informação é construindo uma dualidade em relação a esse alguém. Médico e Monstro. Anos atrás, foi bastante difícil passar por esse processo com alguém que tinha bastante carinho. Me forcei a me distanciar, a evitar contato, e gostaria de dizer que foi um processo mais fácil do que realmente foi. A experiência toda parecia incorpórea. Forçava-me com frequência a lembrar que, se criamos a ideia de que abusadores são monstros, é bem mais difícil acreditar em vítimas. Era necessário se defrontar com o fato de que gostava de acreditar que ele era uma boa pessoa pelas qualidades que eu tinha contato e que ainda achava ele um bom amigo, apesar de sua responsabilidade pela violação de alguém. Ambas as coisas eram verdade e eram uma coisa só. Parece que deveria ser intuitivo, mas não é, ao menos não pra mim.

Em um nível pessoal, a violência sexual moldou toda a minha vida, desde as escalas mais generalistas até às mais pessoais. Ser brasileiro é carregar a violência sexual como herança histórica. Tanto da tão famosa democracia racial e diversidade étnica desse país é efeito da violência sexual como expressão racista. A violação última do corpo. A nível pessoal, no máximo do que me sinto a vontade de compartilhar, a violência sexual é um fantasma que assombra minha sexualidade. Às vezes, parece até um milagre que eu tenha sido capaz de desviar e evitar isso conscientemente por toda minha adolescência e vida adulta até aqui. Principalmente porque sinto que… não entendo. Eu me pergunto se meu não entender é um efeito de não reconhecer situações anteriores como violência ou se é apenas esse desconhecimento que sempre me fez me afastar, talvez até inconscientemente, de atividades e situações vulneráveis.

A verdade é que minhas primeiras interações abertamente sexuais foram cibernéticas. Minha primeira transa, se você assim considerar, foi com uma webcam. A experimentação com o corpo passou primeiro pela minha sexualização enquanto imagem digital para progredir anos depois a uma interação física concreta. Há como você violar o consentimento e a integridade física de alguém por meio de uma plataforma digital? A virtualização da experiência não mudava minha relação com minha libido, que sempre foi alta. Gosto de dizer, com carinho, que tenho poucos vícios nessa vida e que homens com certeza são um deles. Já me disseram que é um vício ruim de se ter, mas argumento que nenhum deles é bom. Alguns fumam cigarro, outros apostam no tigrinho, algumas pessoas se deleitam em acreditar na meritocracia e em trabalhar demais para ser recompensado. Eu gosto de homens.

Mas gostar é higienizado, não é? Gostar não é foder, gostar não é chupar, gostar não traz a ideia do ato sexual, mas sim da pureza do amor e do carinho. Sexo e atração não são sobre amor e carinho? Eu diria que sim. Mas também não. A atividade sexual tem um quê assustador de sempre parecer uma violação. É proximidade demais, vulnerabilidade demais. É fácil, erroneamente, atribuir à violência sexual o caráter de consequência do desejo/da libido e deixar de reconhecê-la como abuso de poder. É essa premissa torta e ingênua que faz alguém acreditar que castração química vai salvar alguém de um monstro ao invés de criar um ser humano com uma relação cada vez mais violenta com a ideia de poder, hierarquia e submissão alheia. Mesmo, teoricamente, compreendendo tudo isso, ainda acho assustador. Ainda tenho medo de meus próprios desejos, ainda tenho dificuldade de me submeter, ainda me pergunto se faço ou há algo errado se sinto tanta vontade de toque e de admiração.

Muitas e muitas edições atrás eu recomendei um texto chamado “Everyone Is Beautiful and No One Is Horny” de RS Benedict. É uma das coisas mais marcantes que já li, poderia citar vários momentos desse ensaio, mas queria pontuar especificamente essa passagem:

Essa tendência cinematográfica [o texto todo trata sobre como o cinema tem atores cada vez mais musculosos e gostosos e, ainda assim, eles parecem não ter tesão na sua representação] reflete a cultura ao redor dela. Mesmo antes da pandemia, millenials e zoomers eram bem menos sexualmente ativos do que a geração anterior a eles. Talvez nós estejamos muito desconcertados pelo Apocalipse; talvez nós somos muito pobres para sair de casa; talvez, tendo que viver com colegas de quarto ou com nossos pais, seja um pouco embaraçoso chamar um parceiro para casa; talvez hajam componentes químicos em nossos ambientes que estão estragando nossos hormônios; talvez nós não tenhamos ideia de como navegar a sexualidade humana para além da cultura do estupro; talvez ser criado com a mensagem de que nossos corpos são uma ameaça de fim da nação tenha broxado nosso entusiasmo por prazer carnal. (tradução minha/nossa)

Foi lendo esse texto que finalmente entendi um dos meus maiores medos: o medo de que minha libido e meu desejo se traduzam como uma violação alheia. Deveria ser simples entender que o consentimento, um consenso entre as duas partes, cria as condições para uma expressão sexual saudável, mas não é, ao menos para mim. Sempre reforço que o que mais quero é tratar alguém com carinho para evitar sentir que estou ultrapassando algum limite. Algumas pessoas querem ser submissas, submetidas à algum nível consensual de violência. Mesmo sendo consentido, ainda me assusta. Enfrentar esse medo me faz me perguntar se quando disse ser “difícil” me afastar de alguém por ele ser um abusador venha da minha própria insegurança em relação a minha expressão sexual. Não queria que isso fosse verdade, não queria que houvesse algum ou qualquer nível de projeção nessa história. Mas, se nunca fui vítima, o que eu sou? Uma das pessoas mais sortudas do planeta? Ou alguém que desconhece e não sabe que está machucando outras pessoas? Será que ser vítima seria a única forma de me acalmar em relação a ser um perpetrador? Seria isso um desejo autodestrutivo por submissão velado como intelectualidade?

Não escrevo isso para dizer que existe nuance na violência sexual. Não acho que exista nem que algum dia vá existir, ela é uma das expressões mais diretas do abuso de poder. Mas sim para argumentar que, ao menos para mim, a violência sexual enquanto fenômeno que está por toda parte me assombra na minha busca por liberdade sexual e por uma expressão sexual saudável.

Apesar de achar que minha identidade enquanto homem gay é consequência de séries quase infinitas de fenômenos conscientes, inconscientes, teoricamente biológicos e culturais, eu consigo relembrar com clareza o dia em que minha mente se adaptou a jamais encarar o que ela veria como uma mulher de forma sexual. Um dia, ainda bem jovem, em companhia de rapazes mais velhos, um deles decidiu abrir uma página de pornografia e procurar “algo bom”. Encontrou o vídeo de uma jovem asiática, categoria da própria plataforma, se masturbando, em uma cadeira de praia, ao lado de uma piscina. Enquanto ele a chamava de gostosa, só conseguia pensar em como essa experiência era estranha. Em como ela parecia.. indefesa, ali, tocando seu corpo, e em como tudo parecia errado, injusto, desconfortável. A situação toda não deve ter durado nem um minuto, mas eu me sentia forçado, pressionado de alguma forma a achar que aquela moça se tocava por mim, que eu, voyeuristicamente, atrás daquela tela, apontava uma câmera contra ela e a forçava a se tocar. Eu só queria que ela parasse.

Começo minhas recomendações desse mês com um vídeo ensaio de Elliot Sang sobre os desafios da solidariedade. Parece uma crença relativamente comum, apesar das tendências de crueldade e indiferença do neoliberalismo, que “ser gentil” é algo fácil, que se importar com os outros é simples, mas Elliot defende que nunca é. Ter solidariedade e apoiar uma causa sempre envolve ir contra um poder estabelecido e sempre envolve sacrificar alguma opção/possibilidade no processo. Ser solidário e/ou engajado e/ou se importar com outros não só é uma escolha ativa e diária, mas é também uma indisposição, um questionamento de estruturas de poder. Se você não está sendo contra ninguém no processo de se solidarizar com uma causa, você não está sendo solidário, você só está limpando sua consciência.

Recomendo também o texto de André Uzêda sobre as denúncias de condições degradantes de trabalho a que funcionários chineses estão sendo submetidos na construição da fábrica de carros elétricos da BYD em Camaçari, na Bahia. Após a Ford descontinuar suas atividades no Brasil, que tinham em Camaçari um enorme polo industrial, o acordo com a BYD por carros elétricos pareceria, superficialmente, como uma “modernização” e uma transição para algo mais sustentável e de melhores condições humanas. Entretanto, mesmo ainda em construção, a realidade dos funcionários demonstra as formas como não há capitalismo sustentável que não seja só capitalismo, como sempre.

Recomendo também o texto de Mia Sato sobre o caso de justiça nos Estados Unidos entre duas influencers minimalistas de hauls e compras excessivas da Amazon que estão, basicamente, plagiando uma a outra. Com essa proposta estética e de conteúdo completamente em tons de branco, bege e preto, além de recomendar tranqueiras a serem compradas pelo site, o texto de Sato é extremamente bem escrito ao detalhar esse estranhamento absurdo do estilo de vida de ambas mulheres e como elas são, em vida, fábricas de criar conteúdo pra internet. Particularmente, essa crise estética de uma total desidentificação, de uma negação do caos e das cores e de qualquer forma de complexidade cromática é terrível pra mim, acho impossível compreender o desejo por morar em um consultório de dentista, em um leito de hospital, em uma nave espacial de filme sci-fi de terror. Talvez esse último até faça um pouco de sentido. De qualquer forma, a história me lembra bastante a complexa relação de plágio/cópia de personalidade e conteúdo de duas influencers brasileiras, Nátaly Neri e Ellora Haonne, que já até produziram conteúdo juntas em dado momento de suas carreiras. A história toda parece um filme bizarro de suspense com tons de homoerotismo. “I suppose I might be a little freaked out about my digital doppelganger, too”.

Minha última recomendação desse mês é o texto de Tatiana Dias e Paulo Motoryn sobre a Brasil Paralelo. Considerei bastante se deveria ou não fazer essa recomendação já que a plataforma do The Intercept me tirou a paciência com sua forçada adesão à newsletter deles, mas como quando li pelo celular fui capaz de ler todo o texto sem precisar assinar nada, deixo minha sugestão. De qualquer forma, a reportagem detalha de forma bastante assustadora o surgimento dessa estrutura educacional de extrema direita a partir de um “mecenato” de indivíduos insatisfeitos com a educação esquerdista institucionalizada hoje. O interessante pra mim, que não consigo parar de pensar desde que li sobre isso, é o quanto essa gente tem dinheiro para torrar. Considerando que Elon Musk fez campanha para Donald Trump, o fascismo sempre é apoiado por quantidades absurdas de dinheiro. Pensando nas tirinhas do André Dahmer, se o dinheiro acabasse amanhã, acho que o fascismo morreria em uns dois dias.

Esse texto é a 27° edição da minha Newsletter “Palavras de Narciso”. Você pode assiná-la pelo link: https://filipenarciso.substack.com/

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