Catástrofes evitáveis
Anthony Stafford Beer (1926–2002) foi um professor britânico da Manchester Business School especializado em pesquisa operacional e cibernética de gerenciamento. Ele foi responsável por cunhar um termo de nove palavras em inglês (dez em português) sobre a heurística do pensamento de sistemas: O propósito de um sistema é o que ele faz (POSIWID). Stafford Beer buscava observar que é inútil argumentar que o propósito de um sistema seria aquilo que ele constantemente falha em realizar. Seus efeitos colaterais e consequências não são externos, distantes do propósito desse sistema, mas sim implicações de sua aplicação. Ainda que sua ideia seja mais aplicada a experiências de usuário e sistemas de código, vejo como um conceito bastante funcional para melhor compreender o sistema econômico em que estamos inseridos.
Então, quando o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, grava um vídeo pedindo para a população brasileira diminuir o número de doações para os afetados pelas enchentes, pois isso pode atrapalhar o comércio local, não se trata do capitalismo em sua face mais vil. Se trata apenas de capitalismo. É a implicação natural e horrenda do sistema socioeconômico em que vivemos: para que exista lucro, é necessário que exista miséria. A filantropia e a caridade possuem validade, elas nunca se sobrepujam a perspectiva de lucro. O propósito de um sistema é o que ele faz.
Por coincidência, esse mês assisti à série Fallout. Com uma trama baseada numa linha do tempo em que a guerra nuclear realmente aconteceu, o grande vilão de Fallout não são os soviéticos ou os comunistas, mas sim a maior empresa estadunidense, Vault-tech. É a Vault-tech, responsável por vender bunkers nucleares e tecnologias que preparam as pessoas para o fim do mundo, quem derruba as primeiras bombas, em busca de optimizar seus lucros com a tragédia. O nome Vault-tech, não fossem as consequências legais e as inconsistências de ambientação por se tratar de uma série em que esses eventos ocorrem no século passado, poderia facilmente ser substituído por Elon Musk ou Tesla. Seus objetivos são os mesmos. Quando Elon Musk utiliza suas redes sociais para comentar o golpe de Estado na Bolívia contra o presidente Evo Morales, afirmando “nós vamos depor quem quisermos, lide com isso”, admitindo que o poder monetário se sobressai ao direito a autodeterminação de um povo, não se trata de uma falha no capitalismo. O propósito de um sistema é o que ele faz.
Quando o governo dos Estados Unidos destina bilhões de dólares para o estado de Israel assassinar crianças palestinas enquanto sua população vive em um sistema de saúde caríssimo majoritariamente privado, o país enfrenta uma crise imobiliária gravíssima e o presidente e suas câmaras se recusam a perdoar as dívidas universitárias milionárias acumuladas por estudantes que realizaram o ensino superior, não há nenhuma falha em vista. O propósito de um sistema é o que ele faz.
A maior favela europeia, Cañada Real, localizada próxima a cidade de Madri, na Espanha, é dividida majoritariamente entre comunidades romenas, marroquinas, e romanis (conhecidos popularmente no Brasil como ciganos). Romenos e marroquinos são corpos imigrantes ilegais, e, assim como os romani, são percebidos como cidadãos de segunda categoria. O Porajmos romani, nome atribuído pelo povo ao holocausto a que foram submetidos pela Alemanha Nazista, parece perdurar até os dias de hoje. A Espanha é também o berço do antissemitismo moderno, sob a imagem de Isabel de Castela e da Igreja Católica no século XV. Quando esses corpos são escolhidos para morrer há mais de cinco séculos, quando a polícia do Rio de Janeiro é treinada por israelenses, quando a necropolítica está em voga, não há fracassos no capitalismo. O propósito de um sistema é o que ele faz.
Nos aproximando novamente do tema em que Stafford Beer se especializou, quando a implementação irrestrita e descontrolada de inteligências artificiais pelos mais diferentes ramos ocasiona uma queda na qualidade do produto, como por exemplo na ferramenta de pesquisa do Google, e em layoffs massivos de especialistas da área, não há uma desvirtuação no propósito benevolente das IAs. Quando essas IAs são utilizadas para substituir o trabalho de criadores e artistas, ao invés de trabalhos monótonos e manuais, é implicação de uma tentativa de desaparecer com o trabalho especializado e criativo. A teoria da internet morta, que afirma que a internet hoje não é mais baseada em conteúdos produzidos por humanos, mas sim por atividades de bots e conteúdos manipulados por algoritmos, deixa de ser uma conspiração e se torna o cotidiano. O propósito de um sistema é o que ele faz.
Talvez pareça uma série de obviedades, mas em um modelo econômico que sempre constrói justificações elaboradas para suas falhas, com suas meritocracias, filantropias e expectativas de justiça, desmistificar suas narrativas é central para desmantelar a ideologia neoliberal de que esse seja o único mundo possível, de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, como coloca Mark Fisher. O propósito de um sistema é o que ele faz.
Há algum tempo, li sobre um pai que preparou seus filhos para sua possível morte súbita. Criou um documento “para quando eu morrer”, que possuía todas as informações essenciais: para quem ligar, como preparar o enterro, como ir atrás do seguro, entre outros. Desde então, penso esporadicamente no que fazer se meus pais morrerem. Não sei para quem ligar, não sei quanto custa um enterro, um caixão, uma cremação. Será que alguém me ajudaria com as despesas? Por que isso gera despesas? Esse mês, penso nas pessoas que tiveram que responder essas perguntas devido à tragédias previstas com antecedência e ignoradas.
Um corpo sem vida ainda é parte do capitalismo, uma pessoa sem casa, sem dinheiro, desnutrida ainda é parte do capitalismo. São consumidores, colaboradores, produtos. Eu, morto, se tiver sorte, não serei mais parte do capitalismo, pois o propósito de um sistema é o que ele faz. Capitalismo sustentável, capitalismo humano, capitalismo socialmente responsável, capitalismo verde. Independente dos tão nobres valores de ESG, da popularização de carros elétricos, da tão instagramável abnegação de influenciadores e figuras de mídia em relação a tragédias, ainda se trata de capitalismo. E o propósito de um sistema é o que ele faz.
Gostaria de terminar essa edição deixando meu apoio e incredulidade à todas as pessoas do Rio Grande do Sul, do Maranhão, e de qualquer região do país e do mundo afetadas por catástrofes evitáveis. Que algum dia esse pesadelo neoliberal acabe e que seja possível escutar profissionais climáticos e de meio ambiente, que agricultores não destruam vegetações para produzir desertos, que não existam indústrias da tragédia. Até lá, os mantenho em meus pensamentos e desejo força para a reconstrução.
Como primeira recomendação esse mês, recomendo a reportagem da Forbes Brasil sobre o caso envolvendo a atriz Scarlett Johansson e o ChatGPT. A atriz, que já interpretou uma voz de inteligência artificial no filme Her de 2013, havia recebido um convite da OpenAI, fundação do ChatGPT, para ser uma das novas assistentes de voz da ferramenta. Após fazer suas considerações, a atriz recusou a oferta, mas descobriu que ainda assim uma assistente com a voz extremamente similar a sua passou a ser disponibilizada na ferramenta, ao que ela entrou judicialmente contra a OpenAI por desrespeitar sua agência enquanto artista e pessoa ao usar de inteligência artificial para simulá-la, contra sua vontade.
Minha segunda recomendação é um e-mail escrito pela ativista dos direitos dos palestinos Rachel Corrie para os seus pais, em 2003. Escrito poucos dias antes da sua morte, esmagada por uma escavadeira israelense que ela tentou impedir de destruir a casa de uma família palestina, Rachel Corrie é símbolo de resistência, de luta, e sua escrita é linda. Sua honestidade e sua indignação com o mundo ao seu redor, como participamos nele, é admirável e incrivelmente triste, considerando sua história. É um texto muito comovente, sendo o trecho que mais me deixa emotivo quando ela comenta sobre resistência não-violenta. Como perder tudo e não ser violento? Ela seria, ela diz. Isso há 20 anos atrás, comentando sobre um genocídio que sionistas dizem ter começado apenas em outubro do ano passado.
Para fechar o mês, recomendo a leitura da reportagem de Maxwell Zeff para o Gizmodo sobre a Amazon dispensar diversos de seus checkouts de “Just Walk Out”, ou só saia andando, utilizado em suas mercearias que diziam ser feitos digitalmente por inteligência artificial mas era, na verdade, produto de centenas de funcionários indianos que assistiam as filmagens das lojas e viam os produtos que os consumidores levavam com eles. A revelação suscita ainda mais a discussão de quem é realmente explorado nas situações em que se diz automatizadas ou independentes da força humana, seria possível que alguém estivesse alimentando e/ou supervisionando essas IAs e sendo mal remunerado, além de não ter seus esforços reconhecidos, no processo.
Recomendações
An email from Rachel Corrie to her parents por Rachel Corrie
Amazon Ditches ‘Just Walk Out’ Checkouts at Its Grocery Stores por Maxwell Zeff
Esse texto é a 21° edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”. Você pode assiná-la pelo link: https://filipenarciso.substack.com/