Campo minado
O homem mais azarado do mundo decide jogar campo minado. Desiste após a 34° partida. Não importa qual seja sua primeira jogada, sempre encontra uma bomba.
Decide dormir, mas não consegue. Fecha os olhos e nada acontece. Fecha os olhos com mais força e mais nada acontece. Gira para a direita, gira para a esquerda, olha para o teto, deita de barriga para baixo. Vira o travesseiro para sentir o lado gelado, mas ele está quente. Abraça outro travesseiro cada vez mais forte, mas ele parece sempre escapar do seu toque. A cama é desconfortável, a noite silenciosa demais. Ouve o próprio coração bater, ouve sua respiração errada. Devo estar com algum problema no pulmão, pensa.
Decide assistir a um filme. Sem saber, está vendo sua própria vida na tela, o filme mais triste que já assistiu. Chora sem parar, sente piedade daqueles atores. A dor representada rasga seu coração, doente sem ele estar ciente. Deverá sofrer um infarto quando a hora chegar, mas não agora, porque agora ele precisa testemunhar a impotência totalizante da representação. Gostaria de salvar as pessoas naquele filme, de fazer alguma diferença, mas nada pode mudar.
Decide tomar seu remédio. A medicação não funciona. Se por descuido dele em não a tomar corretamente, se por a química do seu cérebro ser incurável, ele não sabe. Os médicos não se importam o suficiente, têm outros pacientes a tratar. Perguntam se a medicação tem funcionado e o ouvem responder, acanhado, que acha que sim, o que é bom o suficiente. Já tentou se matar com as pílulas, mas sempre acorda no dia seguinte.
Decide ouvir música. Joni Mitchell canta Blue. Nina Simone canta Just like a woman. Elliot Smith canta Say yes. Seus fones de ouvido, com defeito, fazem com que o som esteja mais alto à sua direita. Está tudo bem, nenhum de seus fones de ouvido nunca funcionou corretamente, isso é tudo que conhece. É relaxante, mas nunca o suficiente. Ainda sente um incômodo e perde a capacidade de relaxar. Vasculhando a biblioteca infinita de músicas a que tem acesso, tenta achar a impossível canção perfeita. Não sabe o que seria mais doloroso: procurá-la para sempre ou algum dia conseguir encontrá-la.
Decide telefonar alguém que ama. Ninguém atende. Tenta mais uma vez. Nem caixa postal, nem mensagem, nem nada. Apenas não estão ali. Ou estão, mas ao verem que é ele, decidem não atender. Seu azar poderia ser contagioso, requer atenção demais, cuidados demais. São sempre as mesmas conversas, as mesmas reclamações, as mesmas dores. Não, não estão ali, não é possível continuar ali.
Estressado, exausto, vencido, se vê forçado a pensar em sua própria vida. Seus pensamentos vão direto para uma das perguntas clássicas sobre a existência: Livre-arbítrio ou predestinação? Que diferença faz se sou igualmente incapaz? Acha que Deus o odeia. Mas então conclui que, se isso fosse verdade, o daria um pouco de tranquilidade, pois não seria tudo sua culpa. Se torna, portanto, o primeiro ser humano a ter certeza que Deus não existe.
Desiste de decidir, apenas se deita e espera sua vida acabar. Mas um fantasma vem assombrá-lo, lembrá-lo de que isso também é uma decisão. O inferno são os outros, diz o homem. O inferno sou eu, ele rebate. E é só mais uma terça-feira.
Retorna ao computador e decide tentar só mais uma vez.