Bovine Excision de Samia: feminilidade é carne sem sangue
Com o lançamento do seu terceiro álbum de estúdio, Bloodless, confirmado para o dia 25 de abril, a cantora Samia Finnerty lançou em 14 de janeiro o primeiro single do álbum, Bovine Excision. O single não foi, no entanto, a primeira menção de Samia a Bloodless, tendo criado no ano anterior uma newsletter para divulgação de textos curtos sobre discussões e divagações em relação aos temas que cercam seu próximo trabalho. Em sua primeira edição, ela afirma com todas as palavras: meu próximo álbum é sobre homens e todos os critérios imaginários que busquei atingir para satisfazê-los.
Contraditoriamente, ao explicitar que Bloodless é sobre sua relação estabelecida com homens, enquanto sujeito generalista, e mais especificamente sobre os critérios internalizados por Samia no processo de tentar satisfazê-los, de buscar atingir esse ideal de aceitação de ser o que se espera, o álbum é inerentemente sobre feminilidade. Afinal, o feminino enquanto categoria só existe em relação de oposição ao masculino e, mais ainda, se trata de uma série de características culturalmente determinadas sobre o que seria aceitável ou compatível com um indivíduo a quem esse gênero foi atribuído ao nascer. Nesse contexto, Bovine Excision, enquanto primeiro single, introduz essa feminilidade como uma experiência grotesca e transcendentalmente contraditória ao expor uma série de eventos cotidianos, como um amontoado de detalhes escritos em um diário ou como uma confusa série de eventos que invadem a memória em uma leitura dinâmica da rotina, que em primeiro momento podem soar desconexos, mas são todos faces da experiência do feminino.
Com uma sonoridade entre folk e rock, o single é uma experiência que se complexifica durante sua duração, atingindo uma forma de clímax em seus momentos finais. Seu título excisão bovina, também conhecida como mutilação de gado, é em referência ao fenômeno prevalente no século passado em que carcaças de gado eram encontradas misteriosamente mortas pela manhã, às vezes em quantidades de dezenas ou centenas, todas esfoladas e mutiladas, sem deixar rastros de sangue. Devido ao caráter impossivelmente técnico e cirúrgico dessas mortes, teorias da conspiração sobre atividade alienígena e de figuras míticas como o Chupacabra passaram a ser popularizadas para preencher a lacuna deixada pela sua ausência de respostas.
Como é evidente em toda a proposta artístico-intelectual de Samia, a letra de Bovine Excision se traduz como o cantar de uma poesia que é produzida a partir de um fluxo de consciência de sua autora. Por essa razão, há um caráter onírico em suas narrativas e descrições, além de uma cumplicidade e intimidade entre ouvinte e cantora ao imprimir a sensação de que se pode ouvir seus pensamentos. Diferentes imagens são sequenciadas caoticamente, como no clipe oficial, construindo os cenários que Samia nos apresenta. No primeiro deles, Samia se descreve sentada em uma banheira bebendo refrigerante diet e lendo o autor Raymond Carver enquanto eles, indefinido dessa forma, batem à porta. Quando termina com essa descrição, Samia repete um mantra a si mesma duas vezes: “eu quero ser intocável”.
Apesar da sua descrição inicial de aparente solitude, há uma relevância nessa figura inespecífica dos outros que batem à porta. A recusa em abri-la traduz todo o cenário que ela cria em uma atitude ou de insubordinação ou de indiferença a demanda alheia, ou ambas opções simultaneamente. O desejo por ser intocável se torna isolamento, até o verso seguinte em que Samia diz “você removeu a porta de suas dobraduras”, que aparenta ser uma resposta direita a sua ação. Essa resposta pode ser tanto uma violação do seu direito à privacidade e ao isolamento quanto uma cautela por parte do outro a quem ela se refere. Seja por receio de que ela poderia estar se ferindo dentro do banheiro, seja pela inconveniência de sua recusa a abri-la, não há mais porta para separá-la dos outros.
O próximo verso, Doll eyes red in the litmus/olhos de boneca vermelhos no tornassol, carrega grande multiplicidade semântica. O tornassol é uma planta utilizada para fabricação de papel utilizado em testes de indicadores ácido-base, sendo, geralmente, a cor vermelha característica de soluções extremamente ácidas. Vermelho também em sua relação mais óbvia é a cor de sangue. Então, além da acidez, é em sangue que se pensa sobre os olhos de boneca a que Samia se refere. A expressão olhos de boneca, por sua vez, pode se referir tanto à expectativa masculina da mulher perfeita e suas feições impossíveis e plásticas, assim como pode se referir à expressão médica de olhos de boneca, que se refere à perda de atividade cerebral, como se por trás dos olhos o indivíduo estivesse vazio, sem consciência. A vermelhidão nos olhos pode representar tanto o rompimento de vasos sanguíneos por estresse quanto à vermelhidão da irritação de choro excessivo, o que também se relaciona com a noção da acidez do teste de tornassol, expondo um desregramento no equilíbrio ácido-base do olho. Essa tendência avermelhada acaba sendo uma imperfeição em relação à expectativa dos olhos de uma boneca, que são sempre impossivelmente brancos em sua esclera.
É nesse jogo de multiplicidade semântica de perversões e impossibilidades que Samia transmite sua feminilidade de Bovine Excision. É essa experiência sisifiana de atingir o inatingível, de busca da impossível perfeição imaculada, que sempre se traduz na experiência como uma brutalidade do Eu. O mistério da excisão bovina, ou da mutilação de gado, possui em si a impossibilidade médico e técnica de uma morte extremamente precisa e limpa, uma destruição cruel e asséptica da vida que não deixa rastros a não ser pela carcaça.
A preferência por um imagético grotesco e sangrento não se verifica pela primeira vez nessa música na discografia de Samia. Em Does Not Heal, canção de seu primeiro álbum, ela descreve graficamente uma ferida de corte profundo que teve na coxa, com suas cores arroxeadas e amareladas e sua pele grossa, firme e estancada a fim de traçar um paralelo entre o ferimento e os desafios de superar, curar de uma relação, e seu desejo relativamente indecente de torcer que a ferida não seja curada para que tanto ela quanto o outro não sejam capazes de superar a relação que tiveram.
Continuando a canção, Samia mais uma vez chega em seu refrão e, dessa vez, ela se refere ao conto da princesa e a ervilha para afirmar duas vezes “eu senti a ervilha, posso comê-la?” como uma metáfora da feminilidade como sensibilidade impossível e, também, como subversão de Samia em relação às expectativas de imagem corporal e etiqueta. No conto de Hans Christian Andersen, um príncipe solitário em busca de uma princesa para se casar conhece diversas pretendentes, sem nunca sentir com certeza de que elas são a princesa ideal que busca. Até que, em um dia chuvoso, bate à porta de seu castelo uma jovem moça ensopada de chuva buscando abrigo, afirmando ser uma princesa. Duvidando de sua verdadeira identidade, a mãe do príncipe decide colocá-la à prova empilhando diversos colchões e cobertas, com apenas uma simples ervilha embaixo de todos eles. Ao acordar pela manhã, a jovem diz que teve uma noite de sono intranquila, pois conseguia sentir alguma coisa na cama machucando sua pele. Com isso, a rainha confirmou sua identidade, pois apenas uma princesa poderia possuir uma pele tão delicada e sensível, assim se casando com o príncipe. Na interpretação apresentada por Samia, apesar de passar no teste, o apetite se sobressai ao desejo do casamento, a fome e o cansaço de ser constantemente testada a vencem ao ponto de perguntar, em uma última demonstração de respeito ou uma última demonstração de descaso a depender do ponto de vista, se pode comer a simples ervilha, sem se importar com o príncipe. A experiência do feminino seria essa fome, essa tribulação constante do ser que, no que Samia apresenta, é incapaz de resistir de sair da expectativa, de não atender às demandas a que é submetida, mesmo quando aparenta em primeiro momento atingir esse ideal.
O terceiro verso da canção, seguindo a mesma estrutura de quatro frases, sendo as duas últimas repetidas entre si, evocam a imagem da cantora removendo sanguessugas de uma roupa de baixo branca, seu pescoço, suas costas e um olhar inescrutável, seguidos mais uma vez de um mantra repetido: “eu quero ser impossível”. As sanguessugas representam a drenagem de sangue, ponto central não só da canção, mas o princípio do álbum como um todo. A sobreposição delas a uma calcinha branca constrói essa relação de oposição do corpo quase nu e purificado, da especificação da cor branca, e o caráter sanguinolento da criatura que busca a drenar. Essa sobreposição não é feita como diferenciação, mas como um trabalho conjunto de atingir pureza. No segundo verso, o elencar de partes do corpo constroem a imagem visualizada pelo ouvinte como observador, testemunha do corpo descrito, e do ser reconhecido de volta a partir do encarar alheio. Não só se vê, como também se é visto. Como se Samia, enquanto objeto da descrição que ela mesma expõe em sua letra, encarasse de volta o observador, se tornando objeto animado. Por fim, desejar ser impossível é o cerne do conflito da experiência de gênero em Bovine Excision. Ser drenado e ser visto são atividades a que Samia se submete a fim de atingir o ideal de transcender, de certa forma, suas próprias limitações e diferenciações em relação ao que deseja ser. O ser de Bovine Excision se encontra eternamente em conflito com o desejo, pois o desejo o move exclusivamente para a despersonalização, a um estado de não-ser.
No verso seguinte, a canção nos coloca numa perspectiva de observação voyeurística de um cenário que Samia testemunhou. Utilizando o nome Fred como alguém a quem o ouvinte também conheça, ela especifica que ele flerta com uma bartender e a diz “nós nos conhecemos aqui ano passado, se lembra?”, ao que a resposta dela é repetida duas vezes como sendo “eu estou velha, mas não estou morta”. A rispidez da resposta da bartender, ao ser repetida, além de enfatizar seu desprazer com a tentativa de flerte, se torna um mantra também de Samia no contexto da canção, como se ela emprestasse as palavras da mulher. Há uma forma de identificação e espelhamento a partir dessa repetição da estrutura, como se a própria cantora repetisse essas palavras para si mesma a fim de se dar o conforto de reconhecer que, apesar da passagem do tempo, ela ainda não está morta. O reconhecimento de não estar morto, nessas condições, indica algum nível de agência do sujeito, ou seja, indica que ele ainda tem as rédeas de sua própria vida e ainda pode fazer algo que deseja ou transformar algo que busca mudar. Reconhecer que ainda não se está morto cria a esperança, a noção de mudança e de transformação, mesmo que não haja qualquer mudança no comportamento ou o que se deseje transformar, é apenas o reconhecimento do potencial de autonomia do indivíduo.
No último verso antes do Outro, Samia cria a imagem de estar sentada em uma entrada de garagem, com vinho de arroz e salgadinhos Lays sabor limão, mais uma vez numa proposta imagética de contemplação e distanciamento, mas, dessa vez, menos pacífica e mais melancólica, apresentando certa estagnação. Na segunda parte do verso, pela primeira vez, uma frase não é repetida duas vezes, ao que ela narra uma pessoa vestida em estampa de leopardo se segurando em um corrimão e girando como uma das dançarinas pintadas por Edgar Degas, famoso artista plástico francês mais conhecido por suas pinturas de dançarinas de balé. Assim como as dançarinas inertes das famosas obras de Degas, corpos que dançam e permanecem estáticos, eternamente contemplados enquanto contradição, é o feminino essa carne sem sangue, vida brutalizada em eterna contradição. Sua referência direta a Degas não seria a primeira vez em que Samia iria deixar às claras sua inspiração nas artes plásticas. Seu single Triptych, de seu primeiro álbum, é desde o título inspirado pelos trípticos de Francis Bacon, inspirados no suicídio de seu amante, e a relação estabelecida por eles entre o amor e a tragédia. De forma similar no que diz respeito ao artista torturado e a tragédia, também em Bovine Excision, o autor Raymond Carver mencionado ao começo da canção é um exemplo de drenar-se da própria vida a partir da arte e da perda de sangue. Sua última obra em vida foi dedicada à tratar da morte do autor Anton Chekhov enquanto Carver em si mesmo morria de câncer de pulmão, tossindo sangue assim como a sua personagem morria de tuberculose.
O fechamento da canção se dá por uma espécie de confissão de Samia sobre o que gostaria de ser, de representar para esse Outro homem inespecífico a que se refere e se desdobra. Ela admite que apenas desejava ser sua amiga, um copo de chá em suas mãos frias. E, na repetição final da canção, drenada e sem sangue (drained, drained, bloodless). Esse é o clímax da entrega impossível que ela dança ao redor durante todo o single, a escolha e preferência pelo seu completo esvaziamento e perda de toda sua força vital apenas para servir ao Outro.
Portanto, o feminino em Bovine Excision, e eu argumentaria em toda a discografia e visão de mundo apresentada na arte de Samia, se trata de uma despersonalização, da transmutação do Eu em concha vazia, em ser exclusivamente um receptáculo. Esse vazio não é uma negação completa da noção de desejo, mas sim uma forma de suspender superficialmente a própria agência em nome do Outro a fim de buscar, simultaneamente, o equilíbrio impossível entre ter suas necessidades atendidas pela presunção do desejo do outro e não ser tomada pela culpa de ser um indivíduo com necessidades ao invés de uma provedora completamente abnegada. O princípio desse vazio, portanto, é uma subserviência insatisfeita, cínica, incompleta. Ao mesmo tempo, é um procedimento considerável clínico e limpo de despersonalização da identidade, uma forma de morte sem sangue ou culpado, sem complicações ou explicação, apenas a brutalidade e a não-vida da impossibilidade carnal mutilada.
Essa transmutação do Eu em criatura, em algo não humano, é prevalente em várias outras canções de sua discografia. Na canção Waverly, também de seu primeiro álbum, Samia diz “Eu sou um patrono vestido de pessoa/Eu sou uma criatura ao invés de mim”, retornando novamente à entrega e a abnegação como cerne, mas também à perversão não humana do Eu como criatura. Na canção Triptych, já mencionada, ela faz um pedido “Faça de mim um predador”, em que ela não só relaciona o Eu a algo que pode ser transformado em uma criatura animalesca e predatória sob certas condições, como também exprime que seria seu desejo se tornar essa criatura. Argumentaria, portanto, que Bovine Excision, assim como tanto da produção artística de Samia, é intrinsecamente queer. A experiência de gênero se torna um aprisionamento que afasta o indivíduo do reconhecimento de si como humano, tendo em vista que a categoria humana contemporânea é intrinsecamente atrelada à divisão binária das categorias homem/mulher. Dessa forma, qualquer desconforto ou incapacidade em atingir uma expressão de gênero satisfatória se traduz como desumanização. Samia, no entanto, apresenta essa desumanização como um refúgio do Eu, um estado contemplativo e de proximidade de si, mas de eterna frustração por não ser o que se espera a partir do seu desejo de ser capaz de servir ao outro. Assim, toda a existência se trata de um conflito entre o que realmente se é em essência e o desejo e a expectativa da conexão, do reconhecimento, do afeto. E é nessas condições, que em todo amanhecer, o Eu é encontrado esfolado e brutalmente assassinado, sem derramar uma gota de sangue sequer.