As palavras de um receptáculo
É hora de cortar o cordão umbilical e vir para o mundo. Aparecer como uma casca vazia, uma concha sem hóspede, uma massa ainda embrionária de consideração e carinho. Nascer para ser apagado da memória, retirado do berço, abandonado ainda vivo para decompor sozinho, calado, entorpecido.
Pensava que tinha deixado de ser um romântico incurável faz algum tempo. Como um homem aquileano, um homem que ama e se atrai por outros homens, creio que me habituei a esperar a dor de qualquer momento em qualquer experiência. Ainda não estou adaptado a me sentir feliz, muito menos a uma felicidade que venha de uma experiência compartilhada.
Ainda assim, amor e desejo é o que me preparei para lutar por toda minha vida. Não em um sentido dignificante, mas em uma conclusão conformada e combativa de que, independentemente de quanto tempo eu exista, todos os meus dias serão dias de resistência.
Sempre estive preparado para odiar todos os homens que viria a conhecer, mas isso nunca aconteceu. Conheci pessoas espirituosas, inseguras, atenciosas, carentes, carinhosas, complexas, mas não conheci pessoas mal-intencionadas. Sempre que eu não era quem machucava, não sentia que existia intenção ou desconsideração nas atitudes alheias.
Aquele dia, não esperava que você fosse me beijar. Estava conformado e tranquilo com a ideia de que não faríamos nada a não ser conversar. Muito me interessava por você, mas parte desse interesse envolvia aceitar que você não me beijaria na situação em que nos encontrávamos. E eu, também, não me colocaria sob o risco de deixar a situação desconfortável entre nós dois.
Mas você me deu meu beijo favorito até hoje. Lento, certo, encaixado. E, com a memória ainda fresca da pessoa tímida e resguardada com quem conversava, lembro-me de olhar você tão vulnerável ao meu lado e pensar que sim, aquela era uma visão a qual eu poderia me acostumar. Senti um desconforto alegre que não sentia há um bom tempo.
Não durou mais que algumas horas. Você precisava ir.
Eu queria insistir e, sendo sincero, eu insisti. Fui até você e disse que gostei muito do tempo que passamos juntos e ainda queria que conversássemos. Chorei até cair no sono. Talvez tenha sido algo que falei. Talvez se eu não tivesse gostado tanto assim. Se demonstrasse menos, se eu fosse menos. E então desisti.
Como descendente de Ganimedes, aquele que sacia a sede carnal e divina, me encontrei cooptado pelo charme distante presente na possibilidade de ser destituído de minha independência. Tirado de minhas funções, liberto de obrigações, contratos. Elevado em um transe inconfundível na busca de escapar do que me prende ao chão. Raptado da vida que devo construir, salvo de meu próprio destino.
Quando me desatento e percebo que estou novamente tentando entender seus motivos, me sinto fraco, como se desse a você um poder sobre mim que nem mesmo é de sua vontade. Não sinto sua falta, mas tenho medo de ser perseguido pela expectativa do que nunca aconteceu. Mais ainda, tenho medo de você nem se lembrar de quem eu sou.
É desolador pensar que escrevo para não ser lido, mas é igualmente assustador concluir que não controlo as potenciais consequências de minhas palavras. Escrever é meu câmbio com minha própria existência: por mais desconfortável que seja a ideia da exposição, é gratificante ocupar um espaço além do conceito, do pensamento.
Tenho pesadelos horríveis com certa frequência. Muitas vezes, sonho que estou sonhando e tento me forçar a acordar, preso nesse paradoxo entre consciência e inconsciência. Dessa vez, sonhei que tinha acordado em meu pequeno quarto vazio e escuro. Olhava ao redor e me perguntava onde você tinha ido parar. Pouco depois, abri meus olhos e senti meu braço sobre seu corpo e me senti seguro, como se nenhum sonho ruim pudesse me tirar dali.
Agora, não consigo dormir. Fico repassando incessantemente os eventos de ontem na minha cabeça. Lembro dos seus olhos, do seu sorriso, das suas perguntas, de passar minha mão pelo seu cabelo, do rubor na sua face, dos diferentes tons na sua voz. Minha cabeça é um turbilhão. Minha visão fica turva e tento esconder como me sinto, mas meus olhos me traem. Na minha diligência de aprender tudo o mais rápido possível, não aprendi a me proteger de bons momentos.
Sinto que você escorre pelos meus dedos, fugindo do meu abraço. Tantos rostos, tantos gostos, tanta vida, tanta admiração e tanto desejo. Tudo acaba depois que essa noite passar. Tudo se esvai no mesmo céu em que ascendemos juntos.
Para evitar esse desfecho, guardo cópias de mim mesmo em um dos únicos momentos em que me sinto eterno: quando somos íntimos, minha pele em contato com a sua, respirando profundamente ao mesmo tempo, olhos fechados, relaxado, tranquilo, feliz. É como se voltasse a ser um corpo celestial e deixasse de ser apenas a promessa de uma vida justa.
Penso que posso ser para você o que precisa. Que te satisfaço, te dou o que quiser, recebo seu cândido alimento, te dou o néctar divino, o ajudo a lidar com você mesmo, a conviver com suas próprias vontades. Me esforço tanto para lapidar as arestas, esconder as hipocrisias e inconsistências, evitar verbalizar minhas preocupações.
Desconfio que meu estado natural seja atraído pelo conflito. As situações nunca são simples exceto quando cristalizadas na memória. Mas, no curto intervalo da minha história em que o ouvi respirar baixinho ao meu lado enquanto dormia e eu, por minha vez, segurava sua mão e encarava a escuridão do quarto em busca do teto, eu me senti em paz. Senti que poderia viver naquele momento para sempre.
No dia em que Júpiter vier me buscar, já o estarei esperando. Como bom filho de Saturno, não vou sentir medo nem vou resistir. Irei me aconchegar em seus braços, fecharei meus olhos, ouvirei o som do bater de suas asas, sentirei o vento em meu rosto e, quando chegarmos em meu novo lar, aceitarei minhas responsabilidades ao seu lado.