As baratas

Filipe Narciso
8 min readOct 31, 2024

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Eu sempre fui uma pessoa bastante cética. Nunca tive muito medo de forças malignas ou assombrações, mas dizer que não me duvidava às vezes seria mentira. Mesmo assim, meus maiores medos sempre foram concretos, como sangue. Odeio sangrar, até o menor dos cortes me deixa ansioso e desconfortável ao ponto de não conseguir pensar direito. Mas nada nunca se comparou ao meu medo de baratas.

Por ser considerado homem, tinha que dissimular meu medo. Precisava reforçar para os outros que o que eu sentia não era medo, era nojo. Isso nunca foi verdade. Foi só quando fiquei mais velho e mais confortável em ser gay que consegui dizer com clareza que o que tenho é muito, muito medo. Elas me perseguem, estão embaixo da minha cama quando tento dormir, estão atrás da porta de armários que abro para procurar alguma coisa, andam pelo teto quando eu olho pra cima, batem suas asas para cima de mim. Quando é verão, não consigo dormir. Sempre imagino que elas estão ali, no quarto escuro, esperando que eu deixe de estar vigiando para andarem por cima do meu corpo. Eu sempre odiei baratas, sempre quis que esse inseto fosse apagado do planeta para que eu nunca mais tivesse que sentir que uma delas estava andando pelo canto do meu olho.

Tudo ficou mais complicado depois de assistir um filme. Vi Nossa Senhora do Nilo (2019) de Atiq Rahimi para a cobertura que estava fazendo da Mostra de Cinema de São Paulo em 2020. O filme é uma adaptação de uma obra homônima da escritora tutsi Scholastique Mukasonga e leva o nome de um prestigiado internato católico para garotas de Ruanda, local onde a história se passa. Acompanhando a vida e as preocupações das garotas do internato, vemos o cenário político do que se tornaria o genocídio contra os tutsis em Ruanda. Foi por esse filme que descobri que era uma prática comum de desumanização chamarem os tutsis de inyenzi. Literalmente, baratas. Depois desse filme, parei de desejar o extermínio das baratas. Sempre me fazia pensar nesse discurso genocida. Era estranho demais me ver dizendo a mesma coisa que tinham dito para justificar não só a morte de tantas pessoas, mas um genocídio, a obliteração de um povo. Comecei a pensar e nunca mais parei.

Esses dias, pensei na pia do meu banheiro que ficou entupida por dias. Me lembrei da experiência de olhar para baixo e encarar aquele ralo, ver os restos de pelos amontoados no gradeado, impedindo a passagem da água. Lembro da água turva pela mistura de pasta de dente e restos de comida descendo tão devagar que a bacia de louça ficava marcada com a espuma da água. Pensei que me achariam repugnante se soubessem o quanto eu protelava resolver aquele problema. Eu me sentia repugnante. Mas havia tentado água fervente, produtos de limpeza, introduzir buchas, qualquer coisa, não tinha funcionado. Precisava de soda cáustica e eu não tinha tempo de comprá-la. Pensei que se houvesse uma barata, ela comeria os restos dos meus pelos e tudo poderia seguir seu curso normalmente. Baratas urbanas ajudam a não deixar o encanamento das cidades ser obstruído. Elas poderiam ter me ajudado a ser menos nojento.

Mas, mesmo se não tivessem função alguma, pois não compartilho da ideia de que a vida deve ter utilidade, não é fascinante pensar na sua capacidade de sobrevivência? Percebi que meu medo sempre se traduzia em um fascínio torto, já que sempre pensava nelas. Pensava no movimento errático das suas perninhas, em como eram finas, parecendo pequenos galhos ou vascularidades de folhas. Sabia que existiam diferentes tipos, que algumas espécies eram atraídas pela luz, que existiam aquelas baratas azuis gigantes que eram ainda mais assustadoras, que a gosma que sai de uma barata quando ela é esmagada é uma camada de gordura emergencial que tenta protegê-la de ter estruturas importantes danificadas, como um airbag. Li uma vez que o medo do desconhecido pode se tornar fascínio quando você decide conhecer. Eu acho que é uma proposição que faz sentido, mas a considero um pouco incompleta, pois argumento que o medo também é uma forma de fascínio. Eu sempre quis saber mais, queria entender o que eu tenho medo.

Curiosamente, assisti o filme A Substância (2024) de Coralie Fargeat esse mês e, como um longa-metragem tão focado na ideia do duplo/duplicata, uma cena me chamou a atenção: quando Elizabeth Sparkle chega ao armazém para buscar a substância™ pela primeira vez, há um plano de filmagem particularmente focado em um pôster na parede de um exterminador de baratas. A silhueta em preto de uma barata aparece rodeada pela cor amarela. A personagem de Demi Moore, ao fundo, veste um casaco totalmente amarelo, com apenas seus cabelos pretos caindo ao redor de seu rosto descoberto. Se o seu casaco é a duplicata da urgência, ela é a barata prestes a ser exterminada.

Particularmente, não gostei da recepção pública desse filme, apesar de o ter achado divertido, talvez um pouco literal demais em um sacrifício custoso da subjetividade. Mas tenho que admitir que ele é.. irresistível. Será que aceitaria uma substância misteriosa que me fizesse nunca mais ser subestimado por um homem? Claro que a mensagem do filme vai muito além da percepção masculina, mas pontuo isso porque, até hoje, todas as vezes em que considerei ativamente me exterminar foi por uma sensação extrema de vergonha e inadequação ligada à homens/pessoas que acho atraentes de alguma forma. Apesar de ser uma fábula mastigada sobre os perigos da busca de um ideal de perfeição e aceitação social, as pessoas não são burras. Ninguém aguenta ser desumanizado. Se a vergonha é a força motriz do afastamento social e da sensação de não ser digno de estabelecer conexões, que é a base do modelo de vida humano, então ninguém quer ser uma barata. O impulso autodestrutivo também é autopreservação. Eu preciso de vínculos como qualquer um.

Se, como pessoa queer, eu sou o monstro da cisheteronormatividade, o Outro que assusta e causa desprezo ao ordenamento social estabelecido, eu não seria uma barata também? Esses bichos invadem meus sonhos, em meus pesadelos elas estão por toda parte. Talvez elas sejam parte de mim. Pra mim é difícil falar sobre sujeira, me sinto sujo o tempo todo. Se me consideram sujo pelo sodomizar, então talvez eu seja uma barata, um Gregor Samsa contemporâneo. Não falo mais em extermínios, independente do meu medo. Não posso me deixar levar pela perspectiva da utilidade, ou da estética, ou da conformidade. Mesmo que eu trema só de pensar que uma delas está perto de mim, quero que continuem existindo. Quero poder reconhecer que o asséptico da ciência do extermínio é muito mais assustador do que a sujeira da decomposição. Quero estar em paz com minha própria carne suja e deixar de valorizar o horror da supremacia humana/branca/patriarcal. Prefiro ser um com as baratas do que com o extermínio.

Em quase todo texto que escrevi nos últimos tempos eu tenho dedicado algum nível de esforço para falar mal de fenômenos ligados a propaganda. Nesse mês, é o caso do texto Eu odiei Longlegs, em que analiso como o filme, mesmo com uma narrativa extremamente mal realizada e datada, foi considerado um dos grandes lançamentos de terror do ano, feito ligado quase inteiramente a qualidade de sua divulgação. Para comemorar o Halloween e o mês do horror, quis fazer desse texto, assim como a edição da minha news, um convite a pensar sobre o que nos dá medo.

Também escrevi um texto no começo do mês sobre um telescópio que ganhei de presente anos atrás. O telescópio é apenas um pretexto pra falar de estrelas e de magia e de soldados. Eu queria falar sobre sonhos, sobre praticidade e sobre amadurecer. Tudo isso de uma vez só, amarrado com o quão difícil é pra mim, como sempre foi, me fazer ser entendido. Gostaria que desse uma chance.

Recomendo também o artigo de Daniel Vergano para a Scientific American em que, a partir da análise de diferentes dados sobre a origem da nossa espécie homo sapiens e suas relações com outras espécies humanas, ele defende que éramos muito mais viajantes e sociáveis do que conquistadores das outras espécies. Estudos antropológicos mostram que menos de 10% do genoma humano hoje é “unicamente humano”, sendo a nossa espécie e nosso surgimento marcada pela reprodução continuada com outras espécies. Seriam, portanto, a guerra, o imperialismo e o etnocentrismo características intrinsecamente humanas? Ou efeitos de um circuito cultural dominado e definido por quem vence e quem destrói? Ou algo totalmente diferente dessas duas opções?

Minha próxima recomendação é a análise de Pranshu Verma e Shelly Tan sobre o desperdício de água intrinsecamente relacionado ao uso de ferramentas de inteligência artificial como o ChatGPT. O artigo expõe com bastante clareza de dados e informações a forma como até mesmo a utilização de linguagens de inteligência artificial para banalidades se expressa em um desperdício de água significativo devido aos sistemas de resfriamento de centrais de dados utilizarem muita água para evitar seu sobreaquecimento. Recuperemos a autonomia, por favor, não dependemos de uma inteligência artificial para nos fornecer respostas.

Ainda sobre tecnologia, divulgo o texto de Andy Chalk sobre as novas diretrizes da plataforma de jogos Steam para seus consumidores. Os novos termos de serviço explicitam que a plataforma apenas oferece chaves de acesso para os jogos disponibilizados e não uma verdadeira aquisição desses bens pelo consumidor. Ou seja, caso os servidores desses jogos parem de existir, seus projetos sejam cancelados ou se, por qualquer razão, eles sejam retirados da plataforma da Steam, não há nada que o consumidor possa fazer para ter acesso a eles novamente. É um sinal sombrio tanto para os direitos dos consumidores quanto, principalmente, para a permanência e o arquivamento de produções artísticas como são jogos digitais. Essa mudança nos termos de serviço reforça a teoria de que a internet enquanto experiência se tornou, meramente, especulativa, deixando de ser concreta.

Continuando a falar sobre propaganda e internet, recomendo o vídeo de Drew Gooden Everybody wants to waste your time em que ele analisa a optimização predatória de como o entretenimento e o acesso à informação tem sido cada vez marcado pela tendência à perda de tempo. Séries longas demais, vídeos-ensaios de sete horas, jogos de videogame de grandes produtoras sendo praticamente um trabalho não remunerado de seus jogadores. Tudo se tornou longo e uma perda de tempo, no pior sentido da expressão. Todas essas coisas só querem manter sua atenção presa por mais tempo, pois o princípio do capitalismo tardio é a economia de atenção. A economia de atenção é sobre a exposição a propaganda, tudo é propaganda e toda propaganda precisa ser vista/testemunhada/sentida. São tempos sombrios. Se cuidem.

Esse texto é a 26° edição da minha Newsletter “Palavras de Narciso”. Você pode assiná-la pelo link: https://filipenarciso.substack.com/

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