Amor é alteridade

Filipe Narciso
8 min read3 days ago

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Com as transformações socioculturais que acarretaram na criação do que se conhece ultimamente como amor romântico, testemunhou-se uma mudança na percepção do que uma união estável/casamento significa e simboliza na vida de um indivíduo. Se, antigamente, qualquer união estável visava ao casamento sempre como troca econômica, como uma elevação sociocultural através do benefício e patrimônio de dois núcleos familiares diferentes, hoje o dinheiro e a prospectiva econômica ainda têm seu valor, mas estar em uma união estável é, essencialmente, uma questão de diferenciação social por meio do prestígio moral tanto de ser desejado quanto de ser emocionalmente capaz de manter uma relação. Ter um namorado ou qualquer vínculo social estável é uma diferenciação de status em relação aos que não o possuem, o que transforma o vínculo exatamente nisso: uma posse. Há, na união estável contemporânea, um entrave gigantesco entre a fantasia e a realidade da experiência amorosa que é efeito de sua transformação em bem patrimonial. Essa ação transformativa, tão característica de uma sociedade baseada na experiência individualista do amor romântico como experiência única e exclusiva do indivíduo, fecha o apaixonado para a formação de outras formas de vínculos afetivos e amorosos que sejam pautados pelo carinho, pela compreensão, pela intimidade e pelo compartilhamento de si com os outros, pois todas essas dinâmicas em uma relação para além da amorosa individual seriam uma violação, uma perversão do idealismo romântico de estar em um relacionamento.

Não levanto o que irei argumentar agora em defesa de estruturas sociais antiquadas, busco apenas as apresentar em diferenciação com o modelo atual, mas na época de casamentos arranjados havia o domínio dessa força intrusiva da família e dos progenitores/responsáveis em definir quem seria um bom pretendente para seus filhos e, assim, a experiência do romance apresentava uma dimensão compartilhada com o outro da família, uma dimensão em que um outro, para bem ou muitas vezes para mal, possuía a influência relacional de estar envolvido no estabelecimento do vínculo em questão. O que se é observado no hoje é a centralidade do amor como experiência incompreensível para observadores e como um impulso de onde saem todas as coisas bonitas. Estar apaixonado, reciprocamente, é sempre um processo considerado bonito, e utilizo esse adjetivo exatamente por sua relação semântica tanto com a estética quanto a moral. O verbo amar e o substantivo amor, no entanto, nunca foram experiências tão isoladas e autocentradas. Escrever sobre amor se tornou um sermão, um paternalismo, o amor romântico se metamorfoseou na forma de um salvador contemporâneo que todos devem estar preparados para receber de braços abertos. Esse amor, no entanto, não é abundante, não se trata de uma experiência coletiva, não é algo a ser dividido, mas sim atomizado. Apesar de necessitar ser compartilhado, esse compartilhamento se dá por meio dos pregações que viriam a apresentar esse amor perfeito a que o indivíduo está intitulado, não apresentando em seu cerne o desejo de falar sobre amor, mas sim se tratando de uma performance sobre o status e a diferenciação moral do eu. Se a internet contemporânea está morta e qualquer forma de comunicação por redes sociais ou publicações pessoais é banhada na pós ironia de que a mensagem, por si só, se torna desvirtuada simplesmente pelo poder político e coerctivo da plataforma e do processo de chegar ao outro, então falar sobre amor se torna, ultimamente, uma propaganda de si.

Como em qualquer debate generalizado, acredito que existem sim exceções. Existem amores que não veem ao eu, cartas de amor que não são sobre a capacidade que um indivíduo possui de escrever, mas sim um ode à beleza que existe no outro, fotos de momentos compartilhados que são, sim, fofas e despreocupadas. Existem pessoas que se amam apesar do cinismo, apesar da ironia, apesar do momento cultural de impossibilidade de sentimento genuíno pela completa destruição do eu em nome do eu observado. No entanto, não enfoco minha argumentação nesses casos ou se, no caso específico do meu leitor, ele está justificado ou não em sentir o amor que sente por alguém, mas sim pelo que se esquece quando se reduz o escopo do eu amoroso a apenas um indivíduo, que seria essa experiência compartilhada do amor e do carinho com os outros. Levanto essa discussão sob o desconforto latente de que há, em algo que acham belo no mundo, um quê de muito vil e excludente. Sequer considerando a dimensão do desejo sexual e da sexualidade, amar, na concepção que defendo, não é um exercício de moralidade e de virtude, mas sim exercício de alteridade. Amar é sempre uma diferenciação, muito mais do que um espaço compartilhado, muito mais do que o status de ser parte de um grupo de pessoas capazes de amar e/ou serem amadas. Não acho, já faz algum tempo, que amar produz apenas beleza. Vejo isso como ingenuidade ou como um estado de negação proveniente do desejo de preservação de uma suposta pureza do sentimento.

Dentre os elementos menos agradáveis e menos belos da crueza do sentimento de amar, a obsessão, o ciúmes e a inveja são odiados como vilões e vistos como sinais de uma fraqueza psíquica do eu. Porém, eu acredito que todos esses sentimentos são válidos, desde que as ações e atitudes relacionadas a eles não sejam de violência e violação do outro. Essas emoções não são um distanciamento de si mesmo, mas sim um aprofundamento no que significa para o indivíduo amar enquanto sujeito sempre insuficiente e sempre em transformação. Negar essas características é negar em si, e no outro, o caráter transformador e incerto da entrega. E isso se estende, na base de tudo que apresento aqui, a todas as relações estabelecidas com o outro de forma minimamente não superficial. Não sei de que forma deixar mais claro que você deveria se importar com o outro, com suas histórias, com o que dizem, não porque isso o faria bem ou porque isso é o certo a se fazer, mas sim porque a comunicação enquanto fenômeno impossível e o compartilhamento de si é multifacetado, diverso, intersecional, abrangente, é raiz que se ramifica e se ramifica e se ramifica por todos esses capilares conectivos do eu, expresso como alteridade, e o outro.

Agora sim, entrando na dimensão da sexualidade e da atração sexual, vejo que a questão da contenção do desejo sexual como um impulso a ser controlado, enjaulado, e que só deveria ser tão forte com o indivíduo amado, se trata de uma forma de ingenuidade. Melhor seria, caso se deseje acreditar numa ficção político-moral difundida no senso comum, acreditar que é comum a todos, sem exceções de gênero ou não, um desejo sexual que em condições certas pode ser desenfreado e que, com uma dose certa de penitência e culpa, seja possível realmente se arrepender pelo descontrole dessa emoção. E levanto isso sem sequer ser religioso, mas sim porque acho esse ceticismo e essa apatia uma negligência. Acredito que vivemos na contemporaneidade a impossibilidade sisifiana do estabelecimento de uma sexualidade saudável e respeitosa enquanto membros de uma sociedade mergulhada até a cabeça na cultura do estupro. Conversar sobre sexo é difícil, conversar sobre desejo é difícil, conversar sobre sexo quando se fala sobre amor é mais impossível ainda. Porém se o argumento que apresento é que seja necessário para amar uma crua remissão da moral e seu poder coercitivo, é essencial pensar no desejo sexual não apenas com maturidade, mas por meio de sua integração como parte definitiva desse debate enquanto emoção a não ser negligenciada.

Tudo isso exposto, urjo o reconhecimento do que se denomina amor como apenas uma performance moral das supostas virtudes de um indivíduo. Amar na era da terapia para todos, da urgência psiquiátrica, do domínio sufocante do eu digital ser mais real do que o eu carnal, é apenas exercício de diferenciação social. O amar que defendo é alteridade pura, do tipo que se sente e que se convive com amigos, familiares, romances passageiros, romances duradouros, pessoas com quem você divide um momento e uma memória. É um mergulho na insuficiência do eu que seduz, que requer a expressão de si no que há de diferente. A padronização, a normatização de uma lei reguladora de um relacionamento estável bem sucedido como a expressão social mais relevante do sucesso do eu é uma crise de desinformação de si, de desconhecimento da própria coletividade. Esse desconhecimento, apesar de ser baseado no individualismo e na atomização da vida, também retira do indivíduo a capacidade de autonomia, construindo a dependência de si mesmo com a expectativa social de ser capaz de se entregar através do carinho e do afeto exclusivamente a um outro indivíduo, apesar de todos os desafios quanto à manutenção de uma relação romântica que deveria atender à todas as necessidades amorosas e afetivas de um sujeito.

Conversando com uma pessoa muito importante para mim esse mês, ela me disse que estava feliz de não ter se casado antes dos 30, pois isso significava que ela muito provavelmente havia desviado de seu primeiro divórcio. Eu espero poder me desviar do meu também.

Para esse mês, como o bom narcisista que sou, quero recomendar dois textos diferentes que escrevi nesse período de 28 dias. O primeiro deles é uma análise da música “Bovine Excision” da cantora Samia, uma das minhas artistas favoritas, em especial nas dimensões sobre o que a canção nos diz sobre feminilidade e o que seria essa experiência do feminino no que Samia escreve. O segundo é um texto que publiquei no dia de São Valentim sobre meu primeiro amor e como o amor pra mim sempre foi uma experiência extrema e visceral das minhas insuficiências. Estar apaixonado sempre foi desejar me tornar outra coisa, sentir que estava apaixonado sempre foi conviver com a noção de que eu não era quem eu gostaria de me tornar.

Recomendo também para esse mês o texto de Rachel Sugar sobre autoestima/autoconfiança publicado pela Vox. Sugar detalha os pormenores de uma sociedade obcecada com a ideia de que ser confiante é a solução de todos os problemas e expõe esse princípio como um valor neoliberal, especialmente defendido na contemporaneidade após a crise financeira global de 2008. Dizer para os outros que todos os seus problemas são resolvidos sendo mais confiante é uma espécie de cortina de fumaça para se reconhecer como os problemas que afligem a sociedade hoje são uma questão de negligência do sistema econômico vigente. É meritocracia a um nível atomizado.

Para fechar o mês, recomendo o texto de Madison Pauly para a plataforma Mother Jones que relaciona como a atual administração do presidente Trump nos EUA está refazendo o Lavender Scare (não encontrei nenhuma forma de tradução oficial do termo para o português, mas poderíamos convencionar aqui de chamar de pânico lavanda), que se tratou das décadas de perseguições contra pessoas queer e LGBTQIA+ a partir dos anos 50 nos Estados Unidos sob a desculpa de que eles não atendiam à ideia de dignidade de uma nação e que estavam suscetíveis aos inimigos comunistas. De forma similar, hoje em dia, se observa no regime de Trump uma perseguição deliberada e direta a toda e qualquer forma de diversidade sexual e de gênero em cargos públicos. Recomendo esse texto, porém com uma gigantesca ressalva. Há um trecho específico, citando uma entrevista que é escrito dessa forma (tradução minha):

“O pânico lavanda foi feito sob a premissa de lealdade ao governo, para proteger o governo de brechas de segurança”, o engenheiro acrescenta. “Agora, é sobre lealdade ao presidente”.

É um excerto especialmente patético que não poderia deixar de desprezar. Percebo, até mesmo nos ciclos progressistas dos Estados Unidos, uma negação forte em relação à própria história do seu país e da concepção de nação que eles possuem. O que se faz, com um trecho como aquele, é dizer que o que está acontecendo agora seria de alguma forma pior do que o era no passado, porque no passado existia uma justificativa plausível em tomarem essas medidas de segurança contra pessoas queer e sua relação percebida com o comunismo e com um sentimento anti-estadunidense. Ora, isso é justificado? Apesar de, atualmente, se tratar de um culto ao líder e isso ser, sim, bastante assustador e alarmante, considero o trecho péssimo. Para piorar, ele ainda é utilizado como uma citação importante e gigantesca que separa dois parágrafos do texto.

Esse texto é a 30° edição da minha Newsletter “Palavras de Narciso”. Você pode assiná-la pelo link: https://filipenarciso.substack.com/

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