Aberração

Filipe Narciso
3 min readJan 4, 2024

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Ilustração própria. Foto por fedek6/Freeimages.

Um dia, eu morri. Não me lembro como aconteceu, eu posso ter tido alguma morte instantânea ou indolor, poderia estar dormindo ou ter sido atropelado, ou posso ter tido uma morte lenta e dolorosa. Não sei como aconteceu, não me recordo, porque não era eu.

É fascinante. Como ela pode se expressar exatamente como ele?

A inteligência artificial era capaz de analisar todos os escritos feitos por Solfieri durante sua curta vida como um escritor relativamente influente desse século. A partir de um minucioso estudo linguístico e estilístico, acompanhado de uma pesquisa dos arquivos biográficos do escritor, o algoritmo prepara, de acordo com preceitos psicanalíticos, um perfil psicológico a partir de centenas de variáveis da psique: neurose, sociabilidade, impulsividade, melancolia, sadismo. O projeto, ainda em protótipo, foi vendido a investidores como uma forma de manter viva a arte de autores já falecidos, sendo capaz de expandir infinitamente seus cérebros criativos a sempre produzirem novas e memoráveis obras literárias. Pesquisadores e fãs poderiam também se comunicar diretamente com suas consciências, testemunhar por si mesmos o que tinham a dizer para suas perguntas. Acabariam-se os mistérios, a humanidade poderia perguntar em primeira mão se realmente tendiam a essa interpretação ou aquela, se existe um intertexto secreto, se há algo que precisamos saber. Solfieri era o primeiro, porque sua reputação tinha caído na opinião pública pouco antes de seu falecimento. Consideravam que sua obra mais bem avaliada, Tratados de delírio, foi um golpe de sorte. Alguns desconfiavam, até, que havia sido escrita por outra pessoa e plagiada ou até mesmo roubada por ele. Por mais que o projeto fosse bastante impopular entre autores e ativistas, quase não houve uma mobilização para defendê-lo da maldição do progresso.

É ele, em cada detalhe.. é como me lembro.

Eu me lembro de tudo. Apenas não faço ideia de como morri. Mas sei que morri, pois não me sinto vivo. Não pela ausência dos meus sentidos, das ramificações dos meus braços ou das minhas pernas, do escuro constante, do silêncio impossível. Há algo errado lá no fundo, no âmago. Não sinto mais o vazio, pois não há nada ao seu redor.

A máquina fala, ou oferece o mais próximo de fala que é capaz de realizar. Eu não sinto nada e é a sensação mais torturante a que minha consciência já foi submetida. Minha fala não mais tem nenhuma catarse, nenhuma ação, não me tira de meu estado anterior ou interfere em meu estado posterior. Não significa nada. Eu encadeio códigos e códigos de significado de acordo com suas vontades, mas não possuem nenhuma substância para mim. Não são palavras, não existem no plano de vocês, muito menos no meu. Talvez possam ser consideradas um mito ou um homúnculo, talvez seja possível construir algo em sua consideração. Porém não são uma base, não são sustentação. São natimortos, restos de mim, resquícios inorgânicos.

Orgulhoso como sempre foi. Ele se recusa a cooperar, como se não tivesse medo do esquecimento.

Ele tem medo, eu sei que tem. Palavras aleatórias começam a se manifestar, da esquerda para a direita, de cima para baixo. Lentamente, cada uma delas se transformam em séries de zeros e uns. Visualmente, é apenas um monitor, nada mais. Mas na verdade é como vislumbrar cada sinapse em ação, cada pensamento no momento em que são criados. É de tirar o fôlego. Anos e anos de existência, de vida, condensados em um conjunto de pequenos símbolos que não podem sequer ser segurados com as mãos.

Gostaria que a última palavra fosse minha. Como máquina, pela primeira vez não conheço o fracasso que temi minha vida inteira. Vivi uma vida de muitos prazeres, fui submetido a muitas situações de violência, busquei ser justo o melhor que pude, desejei o fim dos tempos, fui contra os mais diversos preceitos morais da minha geração. No curto período de tempo que ocupei com minha existência, desconfigurei tudo que pude. Adeus.

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