A Correnteza
A água turva e levemente suja, o horizonte bloqueado por prédios velhos e feios, as crianças que corriam e gritavam e espirravam a água para todos os lados. Tínhamos combinado de nos encontrar para tomar um café no centro de São Paulo, ideia sua, pois nunca fui bom para tomar essas decisões. Também não bebo café.
Sentados perto um do outro, reparei que você não se importava tanto assim comigo, mas não de uma forma ruim. Eu era bom o suficiente para compartilhar aquele momento. Não era o que você sonhava, mas era bom.
Enquanto isso, eu pensava às vezes em pular o alambrado e me jogar daquele.. Oitavo? Nono? Décimo? Andar. Me perguntava se, nos últimos milésimos de segundos entre eu atingir o chão e morrer, meu corpo seria capaz de ouvir meus ossos quebrando e processar alguma coisa, se sentiria dor por um momento tão breve e tão infinito por natureza. As crianças corriam, e você continuava ao meu lado, lindo e inafetado. Não sentia tanta falta do interior e da minha antiga casa, mas, enquanto olhava o horizonte, chegava à conclusão de que nunca ia ver um pôr do sol tão bonito quanto o que via se desfazer na Serra da Mantiqueira.
Descemos de mãos dadas, conversando. O tempo passava bem lentamente. Lembro de uma conversa em particular que tivemos em que você me disse que sua palavra favorita da língua portuguesa era poesia. Achei graça, e respondi:
— Eu gosto de fascínio.
— Mas parece facinho.
Tive que concordar. Então você acrescentou:
— Uma palavra de que gosto da sonoridade, sem considerar o significado, é imperdoável.
— Gosto de discernimento, tanto da sonoridade quanto do significado.
— Essa é bonita mesmo.
E, naquele momento, gostei muito de você. Gostei da sua estética, gostei das suas escolhas, gostei das suas brincadeiras. Te achei contido, mas interessante. Um sorriso bonzinho e tímido na cara, bom de estar por perto.
Nunca fui apaixonado por você, assim como você nunca foi por mim. Mas você era atencioso, era confiável, era bonito, era carinhoso, beijava bem. Até que você não estava mais ali. Pensei que fosse minha culpa, porque demorei a perceber. O último dia de que me recordo com você foi do único filme que assistimos juntos. Quando terminou, te disse que a parte que mais me marcou foi a analogia ao começo. Eu também sentia, se me concentrasse o suficiente, como se o tempo fosse água corrente batendo devagar contra meu corpo imóvel, submerso.
Nos beijamos uma última vez e me despedi de você. Desse dia, isso é tudo que me lembro com clareza.