A Baleia (2023) e Trauma Queer

Filipe Narciso
9 min readNov 12, 2024

--

Ilustração própria. Foto de divulgação de Brendan Fraser como Charlie. A imagem, inclusive, se tornou uma espécie de meme por ser a única foto de divulgação que o filme possuía e ser só Fraser encarando para o lado.

Eu fui assistir o filme “A Baleia” (2023) de Darren Aronofsky por coincidência do destino e com expectativas muito baixas. Cheguei na sala de cinema vários minutos atrasado, não fazia ideia de quanto do filme já havia perdido, e trazia comigo uma série de percepções negativas pré-concebidas sobre o que a experiência viria a ser. Pensei que seria só mais uma mídia direcionada a humilhar e desumanizar o corpo gordo, que o foco narrativo seria como a obesidade é um fracasso individual ou qualquer propaganda política do gênero, mas eu acabei me conectando com a história do filme como poucas formas de arte me fizeram até hoje.

Talvez não tenha sido minha ideia mais brilhante assistir um filme de drama em um primeiro encontro, mas que mal teria? Estava curioso para saber do que se tratava, nada melhor estava em cartaz e costumo ter dificuldade em me ver emocionalmente envolvido com narrativas que considero muito heteronormativas, ou seja, a maior parte dos filmes. Para minha surpresa, e pro rapaz com cara de assustado ao meu lado quando as luzes se acenderam, meu rosto ficou inteiramente alagado em lágrimas e tudo que pude me forçar a dizer pra ele foi “nossa, que filme triste”.

Antes de desenvolver esse texto, gostaria de pontuar que não entrarei em detalhes sobre as acusações de gordofobia e fat suit que o longa possui. Apesar da obesidade mórbida de Charlie (Brendan Fraser) ser um ponto central e uma escolha estilística importante para a mensagem a ser passada, vejo o contexto das acusações como contraditórios o suficiente para não estar de acordo com todas suas argumentações. Sobre a gordofobia, a animalização e a desumanização de Charlie são difíceis de se testemunhar, mas que, ao invés de impedir uma conexão com ele, seu caráter vexatório e humilhante não existe em um vácuo cômico ou de diminuição do sentimento alheio, mas sim como uma representação direta da degradação de um homem em seus momentos finais de vida. Enquanto em relação ao fat suit, a vejo como uma ideia relativamente descabida, pois é derivada da premissa de que Fraser, que fora afastado por muitos anos das telas após denunciar um grande nome de Hollywood de ter o assediado sexualmente, de alguma forma possui um corpo imutável e que nunca poderia ser uma pessoa gorda de alguma forma. Por fim, gostaria de pontuar que adoraria uma representação mais positiva de corpos gordos no cinema ocidental, como desejados, sexys, felizes, satisfeitos consigo mesmos e que não vessem seu físico como o problema, mas sim como o mundo os vê e os ostraciza como problema.

Em “A Baleia”, acompanhamos a história de Charlie, professor remoto de inglês, nos dias finais de sua vida em decorrência de uma obesidade mórbida que tem ameaçado o funcionamento do seu coração e dificultado sua mobilidade. Sabendo da sua condição de saúde deteriorante, Charlie tenta se reaproximar de sua filha (Sadie Sink), uma adolescente difícil que o trata com desprezo e é amarga e cruel com todos ao seu redor.

O que não esperava é que Charlie abandonou sua filha e ex-esposa (Samantha Morton) por ter se apaixonado por um de seus alunos, chamado Alan. Porém, vindo de uma comunidade religiosa muito forte e sendo posteriormente rejeitado tanto pela igreja quanto por sua família, Alan desenvolve anorexia severa, condição que acaba por tirar sua vida e colocar Charlie na situação autodestrutiva em que se encontra no longa. Quem acompanha sua condição de saúde é a irmã enfermeira de Alan, Liz (Hong Chau), que opta por ajudá-lo por carinho e gratidão pela vida que proporcionou ao seu irmão no tempo em que estiveram juntos. Diferentemente de seus pais e da comunidade religiosa em que foi criada, Liz compartilha com Charlie a culpa de não poder ter salvado o irmão da culpa autodestrutiva de ser gay, mesmo sendo uma fonte de apoio para ele.

A Baleia, título do longa, se refere a dois significantes simultâneos, representando tanto o animal mítico de Moby Dick de Herman Melville e o físico de nosso protagonista. Moby Dick é central para a narrativa do longa, pois é o tema do ensaio da filha de Charlie que ele guarda com carinho como uma representação da genialidade de sua mente observadora, espirituosa e honesta. Honestidade é importante para Charlie, é o ponto central de suas aulas, argumentando sempre que ensaios/produções textuais precisam ser autênticas, e não enraizadas no que você acredita que outros querem ouvir. Por isso, ele é deslumbrado pela autenticidade destemida do ensaio de sua filha em dizer que a caça de Moby Dick é maçante e apenas uma forma do protagonista, e consequentemente de seu autor, fugir do contexto miserável de sua própria vida.

E… me pegou. Eu sou obcecado pela ideia de autenticidade. Sou assim desde que me lembro. A autenticidade é Moby Dick de Charlie e quando Ellie, a personagem de Sadie Sink, humilha a auto complacência da missão impossível do capitão Ahab, Charlie é humilhado em conjunto, mas de uma forma provocativa, uma forma que o apresenta, o força a ver um mundo para além da caça infinita. Mas ele já destruiu a própria vida.

Para mim, todo o sofrimento a que as personagens de “A baleia” estão submetidas é reflexo direto de como o trauma queer e a violência homofóbica corrói e fere toda a sociedade. Uma das personagens que mais me conectei e me compadeci no longa é a personagem da ex esposa de Charlie, Mary (Samantha Morton). Mary é visivelmente infeliz, incompreende sua filha e a teme, se vê insuficiente como mãe e como mulher, enfatiza em dado momento do longa que fora trocada por um homem. Apesar do teor homofóbico dessa mensagem, há no ato um espelhamento do julgamento a que ela foi submetida, a sensação de completa insuficiência e inadequação, a percepção de desumanização perante a sociedade, perante a própria filha. Ela é menos mulher por ter sido casada com um homem gay, ela é menos mãe, menos capaz como mãe, por conta de todas as implicações desse evento, o que se traduz em sua filha uma figura incompreensível, intransponível para ela. Mesmo sendo, nos parâmetros apresentados pelo filme, uma mulher hétero, ela é das pessoas mais afetadas pela inexistência de uma liberação queer.

Não gostaria de argumentar nesse texto uma absolvição da responsabilidade de Charlie em relação ao sofrimento das outras personagens, mas gostaria de visualizar, perceber sua história como uma de extrema violência. Quero que possamos perceber como o trauma queer é uma força de coerção extremamente potente e que causa dor e sofrimento em decorrência da completa deterioração do senso de si e da autopreservação. Eu penso em histórias reais, me lembro das histórias queer que sei de pessoas mais velhas ou que fazem parte de esferas dominadas por dogmas religiosos. Até mesmo eu, que não tenho mais contato com religiões católicas, sei de histórias como essas. Todas elas, contadas a mim por terceiros, fofocadas de orelha a orelha até chegarem a um conhecido e até mim. Nunca como uma afirmação de si próprio da pessoa, nunca uma escolha que ela fez, sempre uma violação da sua intimidade.

Uma vez, li uma discussão sobre pessoas em situação de rua que eram inconvenientes. Que gritam, insistem, se irritam caso você não os desse dinheiro, que não agiam somente como invisíveis. Vi alguém dizer que essas pessoas não deviam civilidade a ninguém, pois já haviam sido abandonadas pela sociedade que as cercava. E desde então me pergunto se essas pessoas, abandonadas e deixadas à margem da sociedade, devem alguma forma de explicação para nós, se devem atender nossas expectativas sociais. Mesmo considerando todas as diferenças, em especial de condições econômicas e autonomia estrutural da própria vida, eu vejo o personagem de Charlie com certa similaridade em considerações. Sem pena, sem piedade, sem indulgência, vejo um homem falho, um homem machucado pela vida que se viu forçado a viver, um homem em busca da sua própria felicidade, ferindo outros no seu processo de cura, afetado por uma série de tragédias terríveis. Um homem que se encontrou em um casamento indesejado para fugir de si mesmo, que deixou uma filha abandonada, vítima de alienação parental por conta das condições sociais da homofobia, que viu o parceiro morto pelo mesmo Deus que ele amava incondicionalmente. Responsável por imensas quantidades de dor numa mistura pouco decifrável entre causa e consequência, vítima e agressor, responsável e incriminado.

E é esse fantasma do trauma de existir como algo além da categoria humana, aquém das noções de homem e mulher, algo dicotomicamente fora e dentro da vida social, que sempre se projeta na minha vida nos mais variados momentos. Posso estar tendo o dia mais lindo da minha vida e, ainda assim, sinto o desconforto da cautela e do medo dessa violência a que estive preparado a vida toda. Essa força horrível do passado, sempre um predador do presente e que afeta constantemente meu futuro. Ela se projeta na relação com a soropositividade em conhecidos, na comunidade, na história da identidade gay e LGBT. Se manifesta nas ideações suicidas, nos planos de fugir de casa, nos desejos de ser outra pessoa. No reconhecimento do outro, no compartilhamento da experiência, da dor, de se ver como dois homens gays, duas pessoas queer, sobrevivendo em condições adversas.

E o que eu posso fazer sobre essa dor? Se hoje tenho pais que me amam e me aceitam, mas que sei que carregam sua própria dose de frustrações sobre mim. Se hoje tenho como me expressar esteticamente e sexualmente, mas ainda convivo constantemente com o medo da violência homofóbica. Se hoje posso escrever essas palavras, mas ainda tenho receio de ter meu sofrimento diminuído pela percepção alheia. Tudo parece uma miragem, um disfarce da verdade suprema que é a dor. Então a ameaça de seu retorno continua ali, à espreita, nunca indo embora.

Sinto que já fui todos esses personagens. Sou Mary, machucada por um amor que nunca veio, temerosa da visão alheia, me sentindo insuficiente, desumanizada e enganada pelo mundo a meu redor. Sou Ellie, negligenciada como um sintoma, um efeito de uma sociedade incapaz de lidar com identidade queer e a infância, revoltada, desacredita de que existir seja assim. Sou Alan, abandonado pela vida que por tantos e tantos anos me dediquei a criar, sendo obrigado a ter que me reconstruir do zero depois de adulto, incapaz de superar a culpa, enfraquecido, sem forças ou vontade para seguir por um caminho feliz, pois tudo que conheço é a insuficiência e a vergonha. Sou Liz, fazendo o melhor que posso com meus próprios recursos para tornar a vida de outras pessoas queer que amo melhor, mais tolerável, tantas vezes me destruindo e me machucando nesse processo e, mesmo assim, me sentindo incapaz, impotente. Mas, principalmente, sou o Charlie. Me arrependo de muitas coisas que fiz ao longo da minha vida, levado tanto pela violência homofóbica quanto pela minha própria covardia. Amo palavras, amo honestidade, amo sinceridade nos sentimentos. Sinto pena de mim mesmo e me odeio em iguais proporções. Causei imensa dor às pessoas a meu redor, tenha sido essa minha vontade ou não, e me arrependo muito. Ainda assim, tento buscar alguma ideia de cura, felicidade, alguma noção de autêntico no que vivo.

E isso é um reflexo da minha experiência. Minha tendência a ver essa obra a partir de suas relações com o trauma queer, passando por cima de suas representações problemáticas, é decorrente de como o trauma queer afetou minha vida de formas inimagináveis e eu nunca o havia testemunhado de uma forma tão visceral antes. Por isso, não acredito que obras deveriam evitar aspectos contraditórios, tentar se tornar mais palatáveis, universais, moralmente corretas. A existência humana é um combate de narrativas, a sua medida. Por essa razão, compreendo aqueles que odeiam o filme sem nem o ter visto devido a como se é feita a representação de uma pessoa gorda, entendo aqueles que odeiam a figura do Charlie enquanto pai ausente e não se conectaram com sua história, entendo aqueles incapazes de entender a pulsão autodestrutiva do protagonista. Mais ainda, essa multiplicidade de leituras é algo que considero fascinante. Tudo isso pode ser verdade e uma possibilidade simultaneamente. Mas, considerando tudo isso, ainda considero uma das melhores representações de como o trauma queer interfere na existência de todos.

Desde então, sou fascinado por esse filme pois, para mim, nunca havia visto de forma tão clara, mas ao mesmo tempo tão subjetiva e múltipla e aberta, como o trauma queer é um fantasma, um espectro responsável por dor e sofrimento imensos tanto para pessoas queer quanto para todos ao seu redor. Existir enquanto LGBTQIA+ numa sociedade cisheteronormativa é a história da violência, da negligência, da incompreensão, da autodestruição. A caça sem fim pela autenticidade é o cerne da experiência queer, é sua força motriz. É o questionamento das condições a que o mundo se é considerado mundo, a que uma pessoa é considerada pessoa, ao conjunto de regras que definem a existência social. É incongruente, é incabível, é insuficiência. E, por mais que seja o prazer de não ser a cisheteronormatividade, por mais que seja o prazer de uma vida autêntica, é dor.

--

--

No responses yet