12 meses

Filipe Narciso
8 min readAug 31, 2023

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Teve um dia esse mês em que pensei no que ia escrever para essa edição. Fui assistir a uma de minhas aulas e, em um curto período de tempo, vi duas pessoas que me chamaram a atenção pelo quanto pareciam caricaturas. Primeiro um homem de bigodes comicamente grossos em conjunto a um par de óculos escuros modelo aviador, em uma tarde nem tão ensolarada assim, e depois outro que misturava uma gravata em cores fortes com um casaco claro, visivelmente grande demais para o corpo que o vestia. Em momentos como esse, percebo como todos brincamos de se vestir e construir personagens, talvez condicionado por ter assistido Barbie recentemente. Senti conforto nesse pensamento, como se estivesse um pouco menos sozinho na incerteza de ter uma imagem e ser alguma coisa. E então me ocorreu: é verdade, essa é a edição especial de um ano.

A primeira vez que essa realização se concretizou na minha cabeça, na verdade, foi na própria edição anterior. No instante em que ela saiu, abri outro arquivo e o nomeei 12 meses. Desde o começo, queria falar um pouco sobre estatísticas. Estive pensando em tratar dessa vez, de forma transparente e simplificada, de meu alcance e engajamento com essa publicação mensal.

Para começo de conversa, eu disponibilizo essa publicação por meio de duas plataformas: Tinyletter e Medium.

Iniciando a análise pelos dados disponibilizados pela Tinyletter, na minha primeira edição contei com um total de 9 assinantes. Hoje, esse número subiu para 21, o que é um aumento de mais de 100% (igual seria se passassem de 1 para 2). Em média, as seis primeiras publicações tiveram 10 aberturas de e-mail por edição, enquanto nas seis últimas esse dado subiu para 15. Isso não equivale, claro, a quantas pessoas realmente leram o conteúdo disponibilizado, afinal minha produção poderia ser só mais um e-mail irritante enchendo a caixa de entrada de alguém, mas significa que em alguma medida ele foi visto.

Passando para os dados do Medium, que decidiu dificultar todo esse processo logo agora que decidi usá-los (de acordo com a publicação oficial sobre as alterações, a mudança ocorreu no dia 12 de agosto), a situação é bem mais volátil, porém acredito que assim seja porque são dados mais transparentes, que vou levar em consideração também para o Tinyletter.

Primeiro, o Medium disponibiliza 2 métricas diferentes: quantia de visualizações e quantia de leituras. A diferença está em quantas pessoas abrem seu conteúdo e quantas o leem por completo. Antigamente, a plataforma até oferecia uma média de quanto tempo os leitores demoravam para ler a página até o final, mas se entendi corretamente acabaram retirando essa métrica com as alterações recentes.

Diferentemente do Tinyletter, no Medium edições alternadas possuem métricas melhores ou piores. Em média, as edições mais recentes foram mais bem recebidas, o que é um bom sinal, mas isso não é tão consolidado como nos dados da outra plataforma. Também a média de leituras por visualização parece um valor imprevisível, difícil de pontuar, permanecendo em valores que variam de 25% a 80%. Em geral, edições com menos visualizações possuem uma média maior de leituras, provavelmente porque quem os visualizou são quem sempre acompanha o que escrevo. Ainda assim, algumas edições com muitas visualizações possuem índices de leitura muito bons. De qualquer modo, consideremos que as primeiras seis edições possuíam em média 5 leitores, enquanto hoje esse número subiu para 10.

Obviamente, não é muita coisa, mas é um número em ascensão, a sua medida, de pessoas que valorizam o que tenho a dizer ao ponto de abrirem um espaço para mim em seus cotidianos. Penso também na velha questão do viés de sobrevivência e em como analisamos dados a partir de uma perspectiva utilitarista daquilo que retorna até nós. Claro, números são importantes e são algo tangível com que posso trabalhar, mas o que realmente busco com esse projeto não é mostrar uma perspectiva diferente, dissidente da cisheteronorma ocidental? Será que fui capaz de atingir esse objetivo?

Portanto, considerando em linhas gerais as duas plataformas, tive (e terei, com essa edição) algo em torno de 200 e 250 leituras com minha newsletter esse último ano. É um número melhor do que eu esperava, sendo honesto. Minhas pretensões com esse projeto nunca foram comerciais ou rentáveis, mas é um pouco assustador, não é? Quero dizer, meus pais começaram oficialmente suas carreiras com 18 anos, o que me colocaria três anos atrasado na minha cronologia. Até mesmo minha irmã, que divide uma criação similar a minha, começou a trabalhar ainda adolescente. Eu, aos 21 anos, só leio um pouco, estudo um pouco e escrevo um pouco.

Não é coincidência que comecei esse projeto nesse último ano. Essa sensação de que minha epistemologia não é valida, que minhas perspectivas são meros incômodos para um sistema perfeitamente funcional, que eu não deveria usar as palavras que uso ou dar os nomes que dou aos fenômenos, me persegue durante toda minha experiência universitária. Quando era só um estudante do ensino fundamental ou médio, professores me viam como inteligente e não poupavam elogios. O que, provavelmente, se tornou um problema na formação do meu caráter, que além de tudo sou filho caçula. Agora, na faculdade, a sensação é de que figuras de autoridade constantemente se incomodam com o que tenho a dizer.

Não digo isso em uma perspectiva nostálgica, acho que sou a pessoa menos nostálgica quanto a outras fases da vida que eu mesmo conheço, mas sim que percebi essa mudança na dinâmica das coisas. Eu costumava a ser garoto propaganda, agora tudo que ofereço parece razão de discordância ou desconforto. Pensei então em construir esse espaço onde eu pudesse falar sobre esse incômodo e também divulgar pessoas com epistemologias e propostas parecidas.

Eu diria que essa newsletter me ajudou muito esse último ano e, sem hipérbole alguma, mudou a minha vida. Desde que iniciei esse projeto, tenho estado mais confiante de minhas visões, tenho me sentido mais seguro e confortável em minhas relações com outras pessoas, tenho me sentido mais realizado pessoalmente, como se finalmente conseguisse canalizar minha criatividade e vontade de escrever a algo que realmente me sustentasse, que alimentasse minha alma.

Vivo constantemente com essa sensação de que a existência de vida é uma coincidência fantástica, enquanto a existência de vida consciente de sua própria existência é uma coincidência catastrófica. Só que esses momentos de inspiração, de tentar compreender como essa vivência humana se faz, apesar da catástrofe de ser vida sempre na ameaça de não ser, relaxam minha personalidade inquieta. Não tenho planos futuros para essa newsletter que não sejam continuar até o fim dos meus meses. Veremos o que o tempo reserva.

Minha primeira recomendação para esse mês é o vídeo-ensaio Why Queer TV is Getting Worse por VerilyBitchie. Elu trata sobre o desafio de representar pessoas queer de forma ambivalente, complexa, num mundo de produção de conteúdos em que empresas sempre temem cruzar uma linha que as faça perder a audiência de pessoas conservadoras, colocando pessoas queer em caixas estereotípicas de ideais impossíveis de serem atingidos. O canal também possui um vídeo excelente sobre bissexualidade e seus desafios e condições particulares enquanto sexualidade queer.

Um dos eventos que mais me entristeceu esse mês foi o surgimento de diversas acusações de assédio por parte de funcionárias da cantora Lizzo. Para longe da minha tendência de construir relações parassociais com as pessoas, assim como todos fazem, eu gostava da impressão do que seu sucesso simbolizava, me sentia reconfortado. O vídeo da Tee Noir, alguém que compartilha desse local de decepção e tristeza por motivos similares, é ótimo para exemplificar porque sempre devemos acreditar nas vítimas e para colocar em perspectiva diversos aspectos envolvendo o escândalo.

Um texto muito interessante que li esse mês foi The Internet is not forever after all: CNET deletes old articles to game Google que trata sobre como antigos websites e a internet do final dos anos 90 e início dos anos 2000 caminha para uma completa extinção, dentre outras razões, por conta de como engajamento e monetização são estruturados no modelo de internet contemporâneo. A ideia de que a internet seria ou será “pra sempre” é um mito bem difundido no senso comum, sendo relevante pensar em formas de manter esses arquivos históricos vivos considerando sua falta de uma contraparte física.

Ainda sobre internet, escrever sobre filmes se tornou uma atividade bastante assustadora pra mim com o passar dos anos, provavelmente porque não me considero fã do gênero e não tenho nenhuma forma de educação formal. Assim, sinto que quando falo sobre filmes, me comunico de um espaço que não é nem passional nem intelectual. Ainda assim, We’re all going to the world’s fair me deixou aprisionado por dias no quão potente ele era em explorar uma dinâmica de convívio com a internet que eu mesmo vivi e nunca tinha visto representada de maneira tão clara antes. E, bom, acho que deve ser interessante pra quem já gosta de ler o que escrevo mensalmente ver outros projetos e ideias que tenho desenvolvido. Por isso, essa é minha última recomendação do mês.

Obrigado pelo último ano. Não tenho palavras para descrever o quanto me sinto feliz. Feliz por ser sem medo de falar, de questionar, de expressar e também de poder, a minha medida, dar plataforma para o que outras pessoas dissidentes tem a dizer. Muitas vezes, é assustador se sentir e se reconhecer uma pessoa diferente de alguma forma, como se tudo funcionasse perfeitamente para todos exceto você. Expressar esse sentimento, essa insatisfação, essa inconformidade, se torna uma tarefa não só difícil, mas uma decisão política importante. Sei que para muitas pessoas, seja por serem não brancas ou PCDs ou outro caso, esse processo não se trata de uma decisão e que não existe um caráter honroso inerente, mas minha sexualidade e decorrente identidade queer são decisões que decidi abraçar depois de uma infância e um desenvolvimento pessoal de constante incompreensão quanto a como o mundo funcionava. Ainda não entendo e quero poder verbalizar esse estranhamento.

Quando eu estava escrevendo essa edição, eu me lembrei de uma fala da poetisa negra estadunidense Maya Angelou em entrevista para a NPR. Em divulgação de seu livro autobiográfico sobre sua relação com sua mãe, um ano antes de seu falecimento, Angelou afirmou, em tradução livre feita por mim: “Eu sou Maya Angelou, o que quer que isso signifique e a quem signifique. Porque minha mãe me amou muito e minha avó me amou muito e meu irmão me amou muito, e todos eles me disseram que eu poderia fazer tudo que eu quisesse”.

Penso que gostaria de aumentar o escopo que Angelou apresenta em sua fala para abarcar tantas outras pessoas e referências que me influenciaram e me trouxeram para um hoje como esse. Meus pais e minha irmã, minha família, com certeza tem uma contribuição enorme tanto emocional quanto financeira, pois fazer, por assim dizer, trabalho intelectual só é possível com uma sólida rede de apoio financeira. Mas também quero incluir amigos, professores, pessoas queer que vieram antes de mim, o próprio Paul Preciado, toda pessoa que tenha me tratado com carinho por ser queer. Chegar aqui é também um conjunto desses esforços, dessas existências incríveis de outras pessoas que ajudaram a construir o caminho que posso trilhar todos os dias.

Esse texto é a 12° edição da minha Newsletter “Palavras de dissidente”, pela qual você pode assinar através do link: https://tinyletter.com/FilipeNarciso

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